Alice não mora mais aqui. Nem lá.

Devastador.
Todo mundo sai do filme Para sempre Alice com uma terrível certeza: sim, eu vou ter Alzheimer!                              

O filme é tão maravilhosamente devastador, coloca tão claro o que é a doença, o quão inútil é qualquer coisa que se faça para preveni-la que caem por terra todos aqueles mitos equivocados de que se você fizer bastante palavras cruzadas ou de que se você mantiver a cabeça ativa intelectualmente ou de que se você continuar praticando exercícios, o alemão maldito vai passar a lo largo. 

Balela! Segundo o filme, o alemão liebe cabeções. A única coisa que ajuda é beber água - diz o médico - muita água!

O filme - originalmente Still Alice (USA, 2013) - premiado com o Oscar de Melhor Atriz, é dirigido e escrito por Wash Westmoreland e Richard Glatzer a partir do romance homônimo da uma renomada neurocientista de Harvard, Lisa Genova. E não deixa dúvidas. Sim, pode acontecer com qualquer um. Comigo. Com você. Com ela. Com ele. Sim, do dia pra noite você pode parar uma frase no meio, esquecer de alguma coisa, dar um branco e tic-tac-tic-tac, breve aqui, Alzheimer.

Tictactictac 
A Alice do filme é uma brilhante intelectual, famosa linguista internacional, professora na Columbia, NY. Está ativíssima, dando aulas, palestras, viajando, pratica jogging todas as manhãs, é magrinha, elegante, tem marido bonito, culto e bem de vida, filhos lindos e encaminhados, com exceção da caçula que insiste em ser atriz de teatro, justo ela que, mais tarde - vai-se ver - é a única verdadeiramente amorosa e respeitosa com a triste condição da mãe. A única que não trata Alice feito deficiente mental, aliás, como costumam tratar cuidadores e familiares de doentes com qualquer tipo de demência. Aquele tipo de gente nojenta que fala da doente na frente da doente, como se a pessoa não estivesse mais ali. Odiosos!

Enfim, a vida de Alice antes do Alzheimer precoce e, parece, genético e transmissível aos filhos, é praticamente um contos de fadas pós-moderno, principalmente intelectual.

E a gente ali sentada na plateia do cinema morre três vezes com essa descoberta. E morre mais três quando o neurologista que trata de Alice explica ao marido dela inconformado com a rapidez com que a mente da esposa se degenera: - com intelectuais é pior ainda, muito mais rápido do que com os outros. 

Cruzadas.
Ao primeiro branco em meio a uma frase, numa palestra, Alice disfarça e faz uma piada: - Eu sabia que não devia ter tomado aquele champanhe! E a platéia ri. E ela supera. Mas em segredo, sem contar de seus esquecimentos a ninguém, ela pratica compulsivamente palavras cruzadas em seu celular, fazendo bem lembrar um poemeto do sábio Mario Quintana: " Decifrar palavras cruzadas é uma forma tranquila de desespero". Profeta!

Justo ela, uma linguista, perde as palavras. Que ironia! "As palavras estão na minha frente," - ela fala,  certa hora - " mas não consigo pegá-las." Santo Deus!

Medo.
Da metade do filme em diante, quando o Alzheimer começa mesmo a devastar Alice, toda aquela plateia buliçosa e pipocosa e celularosa  que costuma hoje em dia invadir os cinemas, currando nossos olfatos com manteiga, nossos ouvidos com criquecraques suínos e nossos olhos com luzes dos seus celulares, cala. Aos poucos vão ficando mudos, sem-pipoca, sem coca, sem celular, nada! Nem um pio, mais. Todos com medo. Dentro de suas alminhas pode-se quase ler a legenda: quando será a minha vez? Argh! Calaram, agora, né? Me regozijo.

Mas, na tela, Alice luta. Escreve palavras no quadro-negro da cozinha e tenta repeti-las sem olhar. Procura receitas no Google e finge que sabia de cor. E dê-lhe palavras cruzadas! Mas, quê! O alemão insidioso vem se arrastando feito serpente, pelas beiradas. Você não sabe à que hora ele vai dar o bote. Alice sabe. Pode ser a qualquer instante. Tanto que em um fim de semana na praia ela pede que o marido fique, em vez de voltar a trabalhar, porque ano que vem " eu não sei se ainda vou ser eu"- argumenta. 

Eu? Eu sou Alice. Você é Alice. Ali, naquele instante, somos todos Alice. E os olhos marejam.

Eu-Alice.
Impossível não chorar quando ela aceita fazer um discurso-testemunho em um congresso científico sobre Alzheimer. E começa citando a poeta Elizabeth Bishop no seu poema A arte de perder: "A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: Lugares, nomes, a escala subseqüente Da viagem não feita. Nada disso é sério. (...) "

Arte:perder.











Não bastasse o poema ser lindo, ainda mais naquele contexto, Alice então começa a falar de si. Que estamos muito mais preparados para ganhar do que para perder. E logo ela, que com seu grande ego sempre se orgulhou de ganhar cada vez mais conhecimento, agora tem que aprender a gerenciar a sua perda, cada dia um pouco, cada dia mais um pouco de tudo o que havia aprendido.

E assim ela vai, desnudando em palavras o que é de fato o Alzheimer, uma espécie de apagamento inexorável de tudo que se aprendeu na vida, desde o nome, o lugar, as relações, até a simples tarefa de amarrar um tênis, espécie de Benjamin Button mental, cada dia mais infantilizado, dependente, inerte, à mercê de si própria.

Há uma cena metáfora perfeita, talvez até um pouco forçada, mas muito representativa da doença: Alice escova os dentes e se olha no espelho do banheiro, abre o tubo de pasta de dentes, aperta-o, enche a mão de dentifrício e lambuza de branco na imagem refletida do espelho, o próprio rosto. Nihil!

O mais terrível de tudo não é o não-saber que se apropria do saber. O mais terrível de tudo é saber do não-saber. Igual a todos nós humanos, que inventamos de tudo dia após dia para esquecer da morte, atormentados cotidianamente pelo saber que ela vem. Um dia. Ou outro. E para todos, sem exceção. 

Alzheimer é um arremedo disso, só que em vez de morrer, você continua vivo. Todavia morto. Tem coisa mais apavorante?

Inlucidez.











A dor moral é tanta que em dado momento Alice diz o indizível: - eu preferia ter câncer! Pelo menos estaria tentando me curar, ou numa passeata, estaria fazendo alguma coisa. E as pessoas não me tratariam como louca. (Ou algo assim, mas a ideia é essa, de a doença do corpo ser mais suportável que a da mente. Mente no sentido da lucidez, claro.)

A única saída, segundo o filme - se é que há uma saída- é o amor. Pode não curar. Pode não acabar com a doença. Mas torna a dor de existir mais amena. Love, love, love. As always, all we need is love.

(Graça Craidy)

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24 comentários:

  1. Patrizia Donatella Streparava escreveu:

    Gracinha, não é justo, não logo de manhã, num sábado! A primeira vez que assisti o filme, chorei tanto que perdi pedaço, tive que assistir de novo. Chorei um pouco menos. E agora vem vc com essa beleza de texto, me enrolando as entranhas, tudo de novo. Acabei de me lembrar de uma poesia sua que falava das palavras como lanças, que eu achei de uma lindeza tão grande. Você fez de novo. Levando.

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  2. Marilourdes Franarin escreveu:

    Essa doença está nos rondando. Todo dia temos noticia de amigos, familiares de amigos com diagnóstico da doença ..... que medo.

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  3. Sara Seadi escreveu:

    Q filme, bah!!! Teu texto me emocionou! O q é a cena do banheiro...confesso q chorei com ela...

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  4. Noili Demaman escreveu:

    E X C E L E N T E!

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  5. Patrizia Donatella Streparava escreveu:

    Aviso aos navegantes: a Graça, com seu dom pela escrita, arranca e expõe nossas entranhas. Cuidado ao ler.

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  6. Bernadete Kopf Oppermann28 de março de 2015 às 10:21

    Graça, ainda não vi o filme mas acompanhei na minha família uma doente de Alzheimer. Foste perfeita no sentimento e indignação. Dói, dá medo, mas é real e está muito próximo.

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  7. Eliane Abreu escreveu:

    Eu, que não sou boba, vou ficar longe deste filme...já chega minha inquietude da idade..bjs...

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  8. Ligia Maria Soares Teixeira escreveu:

    Estou orgulhosa de te_lá conhecido. Que cabeça privilegiada e que doença macabra.

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  9. Silvia Jeger escreveu:

    Uau Graca, nao ficou um cabelo no lugar...

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  10. Gagá Duhá Celente escreveu:

    O filme é lindo mas antes não tivesse ido assistir. Meus esquecimentos por conta de não me esforçar, tomarem proporções gigatescas.

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  11. Graça adorei cada palavra, como trabalho com pessoas com doença mental, adorei principalmente tua colocação:" a doença do corpo ser mais suportável que a da mente", costumo dizer que a doença mental é mais destrutiva que a doença clinica pois essa passa, a mental jamais termina e interfere na vida de todos em seu entorno. Parabéns pelo blog. Beijo.

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  12. Jussara Leonardo Moura escreveu:

    Cruzes, Graça ! Estava em dúvida, se aguentaria ver este filme, sem criar apreensões; agora, depois desta tua rica e abrangente exposição ficou ainda mais difícil. . Os teus talentos , minha amada, desnudam as mazelas deste nosso mundo , tão imensamente paradoxal .

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  13. Alice Winckler escreveu:

    Texto Maravilhoso, mais uma vez parabéns Graça Craidy

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  14. Naira Brandão escreveu:

    Acabei de ler. É muito bom. A compreensão do Alzheimer a partir da visão do portador. " nem aqui, nem lá"

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  15. Neusa Maria Araujo escreveu:

    Texto devastador, como o filme! Muito bom!

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  16. Carmen Lenita Corrêa Winckler escreveu:

    Meu Deus!E lindo e ao mesmo tempo muito triste.pior sabendo que pode acontecer a qualquer um de nós.

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  17. Marta Escaleira escreveu:

    Ainda não assisti ao filme, mas já me acabei de chorar com seu texto! Estou vivendo isso com minha mãe, e posso garantir que é uma luta inglória, porque o fim dela é a derrota inexorável da vida. Gracita, obrigada por esse texto maravilhoso! Love, love, love...

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  18. Vera Regina Sartori escreveu:

    Nossa Graça !!!! Não vi o filme ainda, mas.....teu texto deixa tudo muito claro, doença canalha !

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  19. Adalberto Gomes escreveu:

    Que texto impressionante, Lilian! Não vi o filme, nem sei se vou querer vê-lo, pois imagino o sofrimento, o horror dessa mulher (que é o de tantas pessoas acometidas da doença), e que oode ser também o nosso! Valeu muito!

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  20. Silvia Brito escreveu:

    Grande Graça Craidy...

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  21. Eduardo Gil escreveu:

    Um grande filme e um perfeito texto.
    Parabéns Graça.

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  22. A filha mais nova, que embora não tenha um definição profissional, a que mais se apega e entende a mãe com seu carinho, amor de dedicação. Assim que que ser na vida, todos nós que possuímos pessoas na familia com Alzheimer., devamos dedicar AFEIÇÃO, PACIÊNCIA, E MUITO AMOR !!!!!

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  23. Senhora Graça Craidy,com a devida vênia, eu como mulher, acho o que este homem disse simplesmente, inadmissível, pior do que o que ele falou , é a defesa a ele feita por outras mulheres, coisa que acho "medonha" mesmo, tenho medo e pavor desta atitude feminina; de machismo,conivência e solidariedade com demonstrações " engraçadinhas', que na verdade,representam grotescas expressões de machismo e violência, num dos países que mais se matam e "violam" mulheres em todo o mundo. Sinceramente, tenho medo e pavor, queria ser capaz de entender "este lado feminino" , que eu , mesmo sendo uma mulher, não entendo; foge a minha compreensão. Algumas amigas afirmam que este comportamento feminino de defesa a este homem é reflexo do elitismo da Instituição em foco e da alienação destas mulheres em perceberem o peso real das declarações deste homem, pois na prática, mulheres menos abastadas, humildes, sentem na própria pele estas violências machistas no seu dia a dia; outras amigas, alegaram que... "faz parte da falta de companheirismo entre mulheres, apoiar outras mulheres, mesmo em situações como estas,e agem por capricho, visando a aceitação do sistema, do "homem""; não sei em que concordar, fico perplexa com isto, confusa; aí vem "todos erramos", sim, claro, pois concordo que existam momentos infelizes e impensados; porém acho que existem erros e erros, fico mesmo, dividida; num país corrompido de uma maneira geral, num país onde não há tradição alguma de respeito aos Direitos Humanos, à mulher, o Brasil é um dos países mais feminicidas do mundo; é um país brutal,onde não há justiça, (imagine para as ditas minorias sexuais), um país em que, de forma alguma, não há respeito pelas mulheres. Sinto isto na pele, comecei a sentir na minha adolescência quando pegava ônibus para o colégio, pois tinha que pegar ônibus, sempre havia homens ali, impondo sua força, seus desejos e seu pênis, prontos para "violar" as meninas de colégio, novas, impúberes; os caras colavam na gente, sem a menor cerimônia, e muitas outras coisas a mais, presenciei depois, onde percebi "demonstrações machistas" e "violações" envolvendo amigas dentro da própria casa e no trabalho e em vários outros ambientes; e o pior, com a conivência das outras mulheres ..etc...etc. Isto tudo senhora Graça, povoa a minha mente, com um peso maçante, imperativo da posição machista e da imposição de violências diversas. Este homem, o professor Fábio de Melo Azambuja, como formador de opinião, figura pública, me fez recordar e realçar tudo isto, com suas colocações.Cecília. (mahedir1937@outlook.com)

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  24. Graça, enorme prazer ler suas crônicas. Raramente se pode ver tal habilidade. Escreves com uma empatia de si mesma na tragédia e no humor ao pinçar palavras tão ferinas e iluminadas no horror, quanto no limite da sensibilidade do disfarce irônico, fazendo rir.

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