Sobrancelhas circunflexas e outros filmes de terror.

Um choque estético-conceitual.

Aí, então, você vem vindo pela rua e cruza com um rosto de mulher que parece ter saído da sinistra escuridão dos tempos. Você não sabe muito bem o que é que está estranho ali. O que é que está desafinando. Aí então você aguça o olhar e descobre em cima dos olhos da pessoa, no lugar das sobrancelhas, dois acentos circunflexos.

Sim. Dois muito esquisitos acentos circunflexos (ou seria til?) negros como a asa da graúna que parecem ter caído inadvertidamente de uma caixa russa de acentos circunflexos e se jogado de qualquer jeito ali, naquele rosto que não combina ab-so-lu-ta-men-te com acento circunflexo. Tampouco com til. Muito menos daquela cor.

Por várias razões. Uma, é que a tal sobranflexa é preta e o cabelo da pessoa é loiro, por exemplo. Dá um choque estético-conceitual monstro. 

Outra, que a pessoa, por exemplo, tem 80 anos e a sobrancelha ficou sobranceira demais pra idade dela, já meio curvadinha, arrastando os pezinhos e aquele circunflexo assanhado pretão em cima do olho baço. Quase coisa de reincarnação parcial, eu diria.  Só reencarnou a sobrancelha, o corpo ainda é o antigo. Um susto!

É impressionante como essas modas de terror se instalam do dia pra noite. Quando você vê, tem atelier de sobrancelha, bureau de sobrancelha, design de sobrancelha, graduação em sobrancelha, MBA em sobrancelha, o diabo a quatro em sobrancelha. Sobrancelha passa a ser a coisa mais importante do mundo, mais que a decisao do Obama invadir a Siria, quero crer.

Do dia pra noite, parece que um pó de pirlimpimpim encanta todas as mulheres e elas se sobrancelhizam a la loca, sem critério, como se fosse imperdoável você seguir seu caminho com sua velha sobrancelhinha modesta, às vezes quase transparentinha de tão loira, uma sobrancelha recatada. Como a minha, por exemplo. Não! Você passa a ser olhada com um certo desdém. Hummm, sobrancelha sem circunflexo, que demodée!

Se sobrancelhizam à la loca.

E hoje não vou nem falar das sobrancelhas tatuadas que desbotam e ficam verdes e as mulheres desfilam pra lá e pra cá com aquela sobrancelha com limo, parece que dormiram meses numa piscina cheia de algas daquelas que não esvaziam no inverno, sabe qual?

Assim é também com essas malditas cirurgias plásticas que estão criando multidões avassaladoras de criaturas com olhos arregalados. Cara de quem foi pega no flagra roubando o tempo e pá! ficou congelada bem na hora que levou o susto, que nem as avós da gente diziam pra não sair do banho quente e abrir a geladeira senão entortava a boca. 

Toda vez que me deparo com essas pessoas arregaladas com ânsia de volver a los 17, me pergunto se elas se dão conta de que não enganam ninguém, de que todo mundo saca que ali teve a maozinha sinistra de um cirurgião plástico e seu bisturi enlouquecido, que dá pra ver direitinho que operou porque passa a sensação visual de que o rosto saiu de registro e ficou, sei lá, com duplo foco.

Outro desgosto é esse monte de mulher com beição afro em boca de brancona. Um pavor! Outro dia morri de rir quando li que uma cidadã indignada do grande ABC encheu de desaforo a mulher do Lula achando que ela fosse a Martha Suplicy. As duas - Martha e Marisa - acabaram ficando gêmeas univitelinas, de tanto silicone que tacaram nos lábios.

Não quero nem falar muito alto o que eu penso, porque você vai dizer que eu sou desbocada, mas toda vez que eu vejo essas boconas siliconadas se estrebuchando pra fora, reviradas, fazendo biquinho de pelicano, me vem à mente outra parte do corpo da mulher. Mais ao sul, eu diria. Mas, por respeito, não vou citar nomes. Nem populares nem científicos. Use a sua imaginação.

E pra encerrar meus pasmos de hoje, quero colocar em pauta também certas criaturas que se vestem com roupa de adolescente, porque malharam bastante - que bom! - e estão com seus corpitchos em dia, e deixam o cabelão lá na cintura, bem tratado, que só!

Trocaram a cabeça com o corpo?

Só que tem que quando você vê elas de costas, tudo bem, pec pec, elas vão desfilando na sua frente, na boa, você pensa que ali tem uma teenager bonitona, que bacana. Quando ela se vira,  gente do céu, fica aquele impasse, aquele descompasso, aquela dessintonia : como, assim? Trocaram a cabeça do corpo? Parece montagem enganosa. Cabeça duma, corpo doutra. Aquelas cenas de filme de bruxa má que se disfarça de mocinha bonita e que quando se desfaz se esboroa todinha e  fica só aquele pó melancólico no chão.  Sexta Feira 13 perde!

Podem me jogar pedra, dizer que sou old fashion, ultrapassada e que cada um vive como quer e gosta e pode. E não há de faltar também quem ache que tô com inveja. Ok. Ok. Ok. Eu aguento. Só não me peçam pra fazer de conta que não tô vendo, porque lá no fundo de moi vive um gurizinho tinhoso. Aquele que falou que o rei tava pelado.  Sabe qual? (Graça Craidy)

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A voz dublada de Deus.

Cadê a voz de Deus dublada?
Eu juro que me esforcei. Mesmo.

Desde os meus 18 anos, mais ou menos, tenho passado década atrás de década fazendo boa vontade e vistas grossas e ouvidos moucos à falta de imaginação e de preparo e de afetividade dos padres que rezam missas.


Tentei de tudo. Missa de domingo, a mais tradicional. Missa de Santo Antônio, a mais afetiva. Missa de 7º dia, a mais triste. De um mês. Um ano. Missa de casamento, a mais festiva. Missa de primeira sexta-feira do mês, a mais esperançosa. Missa de Natal, de Páscoa, de Ramos. Missa de batizado. Primeira comunhão, crisma, vocações. Não tem jeito.

Os padres estão cada dia mais diazepâmicos, no sentido sedativo da palavra. Não falo apenas da ausência total de talento para predicar seus sermões, conversar tête-a-tête com seus fiéis que foram ali buscar uma luz, um conselho, uma sabedoria, uma voz de Deus dublada.

Nada.

Seus sotaques aborrecidos são muitos. Ou o velho italiano das colônias em cujos seminários os filhos de imigrantes eram matriculados sob a égide de vocações não tão verdadeiras para obter instrução de qualidade sem ônus financeiro - sem falar na onipotência de algumas mammas que queriam para sua família um intermediador particular ao paraíso.  Ou o alemão, dos poucos pastores arrebatados das lides de Lutero da igreja evangélica. Ou - mais modernamente falando - o polonês, que entrou na moda com a ascensão de João Paulo II.

Todos eles emitem sons com o mesmo tom monocórdio, cansativo e anestésico que se sobrepõe soberano a qualquer coisa que seja dita, do velho ao mais novo versículo do novo testamento, induzindo fatalmente ao bocejo - principalmente mental! -,  ao pensamento fugidio e à impaciente espiadela no relógio.

Se o fiel que leu o evangelho contou que naquele tempo patati patatá patati patatá, por que é que o padre, quando vai fazer o sermão não parte do pressusposto, óbvio, aliás,  de que sim, nós todos já ouvimos o patati patatá, há poucos minutos?

10 X zero nos intelectuaizzzzz.
Não. Ele não acredita que a gente ouviu. E conta tudo de novo, com as mesmas palavras, variando aqui e ali um há-por-tem. Em vez de já partir pros finalmente da interpretação ou da inspiração para nos contar o que aquele patati patata significa para nossa vida mortal e imortal, como pode nos ajudar a sermos mais felizes, mais bacanas, mais alguma coisa.

Não. Isso jamais acontece. Ainda que intimamente a gente vá ouvindo ele falar e fique sublinhando cada fim de frase dele com mudas interrogações: E...? E...? E...? Com respostas que não chegam nunca, porque depois que o padre repete todo o evangelho que - atente-se again! - já foi lido, ele fala uma ou outra palavrinha pífia, recolhe os panos de sua batina e volta pro altar.

Minto. Tem vezes que o padre encarna um passador de pito (deve ser daí que vem a expressão "passar sermão") e começa a criticar o fiel presente e o ausente com tom de apocalipse, fazendo o povo se sentir com 5 anos de idade e as calças borradas. Sinceramente, não sei o que me irrita e entedia mais, se o padre redundante ou se o justiceiro de araque.

Fico pensando: me poupe! Não vim aqui pra ouvir pito. Coisa mais anacrônica, padre passando pito! Com o telhado de vidro que anda a igreja católica, mais devia o padre olhar pro seu próprio rabo - com o perdão da analogia! - antes de jogar pedra no telhado alheio.

Nem o Papa Bento aguentou, aliás, tamanha a sujeirama com que se deparou nos bastidores vaticanescos. Mas, enfim, está mais que na hora de os padres pararem de capinar sentados e mudarem seus sermões para algo interessante, pertinente, cativante e - eu ousaria sonhar - arrebatador.

Ou eles tratam as pessoas que vão à missa com mais afeto e sabedoria ou vão perder a platéia para os pastores histéricos daquelas abomináveis igrejas de televisão. Em matéria de sedução, lamento informar,  os espetaculosos pelo-duro dão de dez a zero nos nossos tedesco-italianos metidos a intelectuaizzzzzz.

(Graça Craidy)

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O abominável mala-do-buffet.

O MALA DO BUFFET NÃO TEM PRESSA.
Todos que já comeram em buffet - essa predatória invenção urbana que nos faz cometer combinações gastronômicas brutais - certamente já cruzaram com o mala-do-buffet.

De longe você já sabe que é ele. Pelo jeito de caminhar. Lento. Mocorongo. Sem noção de tempo. Caído do caminhão de mudança. O mala-do-buffet é aquele ali, ó, que ocupa o maior m2  por percurso diante do buffet.

O mala-do-buffet não sabe que o horário do meio-dia passa rápido e que todas as pessoas que estão ali - todas, com exceção dos frequentadores da terceira idade que, por sinal, muitas vezes se constituem nos malas-seniors do buffet - têm pressa.

Não. Pro mala-do-buffet, o tempo de relógio é de outro reino que não o terreno, metropolitano, feito dos parcos minutos do intervalo para o almoço.

O mala-do-buffet não está nem aí pra tempo. A única, única, única coisa que interessa ao mala-do-buffet desde o momento em que ele entra na fila do buffet é saber em quantas vezes vai escolher quantas folhinhas de alface roxa, crespa, americana, romana, rúcula. Em quantas idas e voltas do pegador de inox ele vai transportar as rodelinhas de cenoura, uma após a outra, uma após a outra, até se dar por satisfeito.

E entao, quando ele acha que tá, que deu! - e você pode perceber uma espécie de epifania estética em seus olhinhos revirados de mala-do-buffet - ele baixa as pálpebras e pá: troca para o transporte das rodelinhas de beterraba.  E, a seguir, para os quadradinhos de xuxu.

Ops! O mala-do-buffet se arrependeu. Ele quer ainda mais uma rodelinha da cenoura, licença! E lá vem o mala-do-buffet com seu pegador feroz espichando o braço pra trás em uma manobra traiçoeira e mau-caráter de querer retroceder depois que toda a fila atrás dele andou.

E não adianta você rosnar e bufar, olhar pra cima invocando os gárgulas do buffet. Assim como não pensa em você, o mala-do-buffet não vê e também não ouve você. Nem se canse! Como dizia minha amada mãezinha, oferece pra jesus! (embora eu sempre tenha me perguntado mudamente o que o pobre do jesus ia querer com aquela malice?).

Não pense que acabou. Agora que ele encheu o prato com microporçõezonas transportadas como se fosse um formigo de La Fontaine e não uma pessoa, o mala-do-buffet vai colocar o azeite, o vinagre, o balsâmico, o molho. Ah, meudeusinho, o problema do mala-do-buffet é o tanto de escolhas que só um buffet oferece!

O MALA DO BUFFET TEM EPIFANIAS.
Até a porcaria do molho de colocar na porcaria da salada oferece opções e atravanca as rodinhas - aliás, inexistentes! - nos pés do mala-do-buffet. Sim! Este é o problema: cada vez que o mala-do-buffet pode escolher, ele empaca, deliciado com a maravilhosa sensação obama-sammy-davis-jr de Yes-I-Can que só um buffet dá. Vai molho de maionese com cebolinha verde, de oliva com alecrim e pimenta ou quem sabe de mel com castanhas picadas? Tic tac tic tac!

E agora você se prepara mentalmente com o seu plasilzinho de plantão, porque o mala-do-buffet vai se servir da comida propriamente dita. Você sabe que ele vai praticar atrocidades terríveis que ferem os princípios mais básicos da gastronomia.

Não, criatura de deus! Jamais derrame  feijao no molho branco de queijo que cobre a lasanha. Não, ser humano inferior! Peixe não combina com macarrão à bolonhesa. Não, sujeito bagual! Frango xadrez não se come com moqueca à baiana. Eca!

Mas, ainda há outros deslizes abomináveis que só um sujeito ou uma sujeita com DNA de mala-de-buffet é capaz.

Por exemplo, falar pelos cotovelos em cima das comidas contaminando generosamente o buffet com todas as suas bactérias de estimação que ele, ela carregam de carona nos seus verborrágicos perdigotos.

Ou usar o pegador de inox de um prato pra pegar comidas dos outros pratos do buffet, deixando tudo melecado de vários sabores.

Ou, ainda, espichar aquele braço de Os Incríveis pra alcançar aquela comida láaa do outro lado da mesa do buffet, arrastando a manga em tudo o q encontrar pelo caminho.

E pode acrescentar aí passar as mãos nas madeixas e deixa cair longos fios de cabelos que se projetam em câmera lenta e acabam se aninhando mansamente nos recôndito dos pratos do buffet.

Finalmente, comer coisas do buffet ali, mesmo, com as mãos nuas, antes de colocar no prato.

Sem falar no malinha de buffet que mergulha a colher do creme de baunilha ou do sagu inteirinha, com cabo e tudo dentro da tigela, no buffet de sobremesas, e quando você vai pegar pra se servir, nhé! Tudo peguento!

Mais mala que o mala-de-buffet ortodoxo, só o mala-do-buffet heterodoxo: o que vem imediatamente atrás de você na fila e gruda no seu calcanhar pressionando centímetro a centímetro pra você - que ele acha ser um tremendo dum mala-de-buffet - andar mais rápido. Bah! (Graça Craidy)

Ilustrações: Giuseppe Arcimboldo, pintor italiano, século 16.

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O inferno são os outros celulares.


No meio do caminho tem um celular.
Sartre que me perdoe o uso fútil de sua famosa frase, mas nada é mais representativo do inferno em que se tornaram os outros, hoje, do que o maldito celular. Nada, mesmo. 

Onde quer que você ande, da padaria à ópera, da fila do banco à sala de espera do dentista, do taxi especial ao ônibus mais mequetrefe, sempre há um celular no meio do caminho com um idiota à coté falando alto com alguém que você não conhece, não quer conhecer e não tem o menor interesse em saber detalhes da desimportante vida da criatura. Ainda mais nesse volume pra acordar bêbado que eles adoram dialogar, numa compulsão bárbara de se expor na vitrine chafurdando na sua medíocre cotidianidade como se estivessem descendo a Champs Elysées, tralalá! 


Virar a cabeça e vomitar verde.
Odeio. Quero esgoelar. Quero me transformar na menina possuída do O Exorcista original pra vomitar verde na pessoa, assim, de repente e do nada, numa simples e providencial virada de cabeça. Ah!

Agora mesmo, eu estava numa lanchonete e lá atrás um rapaz falava em altos brados no celular com alguém. E nós outros todos mastigando nossos cheeseburguers bovinamente no ritmo daquela prosa fiada, sem reagir, como se fosse natural aquela invasão do domicílio dos nossos ouvidos.

O pior veio depois, quando o mentecapto ligou para outro amigo e, como nesse ínterim  seu lanche chegou à mesa e ele não podia segurar ao mesmo tempo o cheeseburguer e o celular, não teve a menor dúvida: apertou o botão do alto-falante do aparelho. E todos nós não apenas ficamos escutando as frases dele, como as respostas do lado de lá.


A tela do celular X tela do cinema.
Ir ao cinema, também. Outro inferno. Não bastasse a praga das pipocas barulhentas e malcheirosas à manteiga e os refrigerantes em lata sendo abertos ploft! estuprando calhordamente as cenas mais delicadas do filme e o som de mastigação suína invadindo a trilha, ainda tem a praga dos celulares com suas telas iluminadas onde os ansiolíticodependentes ficam clicando toda hora pra ver se chegou email, se chegou mensagem, que horas são, e agora, que horas são? 

Show? Outra devastação. Não sei porque as pessoas vão a show hoje em dia, se em vez de ver o show, curtir, dançar, elas só querem filmar o espetáculo com seus smartphones último tipo atrapalhando a nossa visão, atraindo magneticamente nossos olhares, perturbando nossa fruição com seu pensamentinho autoral de ser o primeiro a postar no Face olha-eu-aqui, ó no show superhipermega do Fulano. Saco! 


Fotografar é melhor que viver.
Sem falar na turba que se junta na frente do palco. Pra chegar mais perto dos seus ídolos? - você pergunta. Não. Para o celular deles chegar mais perto dos seus ídolos. Porque eles adoram a vida de segunda mão que só o celular dá. Aquela coisa Guy Debord na veia, do mundo mediado por imagens, espetacularizado até sugar todo o sangue e só deixar robozinhos tecnologizados. 

Ópera? Não, você diz botando a mão na boca horrorizado, ninguém se atreveria a interromper ritual tão centenariamente sagrado. Doce engano! Eu vi e ouvi, com esses olhos e ouvidos que a terra há de comer, uma dondoca quase apanhar do marido porque o celular dela tocou, ela não só atendeu como queria ficar falando, ali, em pleno primeiro ato, enquanto a soprano se esganipava lá no palco.


Whats app,  what a hell!
Aula? No me hagas reír que tengo el lábio partido! Jamais esquecerei em plena aula de Processo Criativo na ESPM, um grupo de alunos apresentando seus trabalhos lá na frente, toca o celular de um deles, que não se faz de rogado. Pára de falar conosco, abre a jaqueta, pega o celular e  eu e todos seus colegas, estarrecidos, o escutamos dizer:   - Alô, mãe? 

E não alimente ilusões com encontros de família. Domingo desses eu almoçava com jovens do clã e quando dei por mim conversava com as paredes. Meus dois interlocutores tinham sido abduzidos pelo Facebook, pelo WhatsApp, pelo raio que o parta.

No último Natal, peguei um ônibus de Júlio de Castilhos a Ijuí, coisa pouca de viagem, beleza, visitar a família, ah, que lindo é o Natal! 
Não funka no meu ouvido, pô!
Estou ali na janelinha embevecida com o verde da paisagem, quando me invade uma música brega no máximo do volume. Viro pro lado, uma tipa horrorosa segurava seu celular na mão e nos brindava a todos do ônibus com seu abominável gosto musical, feito uma deusa do lixão. Tentei me controlar. Calada, Graça! Até a hora em que ela veio de Tati Quebra-Barraco funkando nos meus ouvidos. Botei pra quebrar, também. 

E os loucos mansos que agora você cruza nas ruas, nos cafés, nos shoppings, no trânsito? Gente sem celular na mão mas que está, sim, falando no celular. Arrá, não contava com a astúcia deles? Fone de ouvido, Watson. Do nada, cruza com você um ser humano com o olhar vago falando em voz alta coisas mais vagas ainda. Você leva um susto, pensa que a criatura enlouqueceu, saiu da casinha, sofre de Alzheimer súbito. Nada!

E o pior é que os profetas do marketing só fazem anunciar que o celular vai cada vez mais ser o foco da convergência de comunicação.


Celulódromo, já!
Se a democratização do celular virou uma ditadura abominável, se não tem mesmo salvação, se está tudo dominado sem remédio, as pessoas precisam aprender a usá-lo com educação, parcimônia e respeito ao Outro. Por favor! 

Ou então, sofram as consequências: celulódromo, já! 

( Graça Craidy)

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O assassinato do autor.

Como um saco de gatos.
Olhe bem o anúncio abaixo criado pela DM9Sul para a RBS em homenagem ao Dia do Jornalista. E repare nas aspas que iniciam cada parágrafo. Agora, procure o nome do jornalista homenageado, autor da citação. Não sabe quem disse coisa tão interessante?

Nunca saberá.

O Grupo RBS e a DM9Sul parecem ser muito mais apaixonados pelo jornalismo que pelos jornalistas. E a homenagem, no fundo, não é bem uma homenagem.


Anúncio página dupla publicado na ZH em 07.04.2013, p. 20 e 21.
O único que você vai encontrar é, no final do anúncio, abaixo da assinatura, em uma letrinha menor que a das citações, tipo nota de pé de página, a explicação: Contribuíram para este anúncio os jornalistas do Grupo RBS, dois pontos. 

E ali, sim, os nomes dos autores das frases - todos eles grandes jornalistas, aliás - enfileiradinhos como numa esteira de fábrica, como gado que vai pro brete, como fruta que vai pra caixa, como num saco de gatos de todas as pelagens, sem que o leitor tenha como saber quem disse o que quando como onde por que.

Como se a função fosse mais importante que o sujeito que a faz funcionar. Como se o motor do jornalismo fosse o próprio jornalismo - entidade coisificada e não conceitual - em vez de o jornalista, o cabeça, a inteligência, a origem.


Homenagem ou pseudo homenagem?
Um horror! Um horror!

Das coisas que mais têm me chocado nessa esquisita pós-modernidade do vale-tudo é perceber que a autoria cada dia mais parece que foi pras cucuias.

Dia após dia, percebo que as pessoas jogam com a autoria das frases como se fosse um lego que você troca ao belprazer montando e remontando os pensamentos alheios ao sabor da vontade de cada um.

Nesses tempos de hiperindividualismo lipovetskyano onde cada um desse imenso bando de mimados só deve explicações ao próprio umbigo, o conceito de autoria muda cada vez mais de ser propriedade intelectual daquele que cria, deu origem, deu luz, para ser a propriedade de quem se apropria, recria, copia.


A volta ao breu medieval.
Ou pior, a autoria não tem mais importância nenhuma e portanto todas as coisas serão de autoria anônima. A escuridão total. O breu medieval. O grande nada onde você pergunta quem foi que fez e a resposta é: não interessa.

Volta e meia você se depara hoje com textos que ninguém sabe de onde saíram, assinados na marra por autores que você sabe muito bem de onde saíram, mas que jamé-de-la-vi escreveriam aquilo, ou que claramente não têm aquele estilo ou - filme de terror! - jamais tiveram contato com aquelas coisas citadas, por uma simples razão. Já estavam mortos quando elas foram inventadas.

Outro dia até o Luís Fernando Veríssimo escreveu uma crônica sobre isso. Que as pessoas vem elogiar um texto pretensamente dele e que quando ele agradece mas diz que não foi ele que o escreveu, o interlocutor reage quase agressivamente:- foi, sim!

Plasil! Plasil!

E essa praga se alastra para todas as áreas da autoria. Das letras às artes visuais. Das colcheias às descobertas científicas e tecnológicas.


O espírito do samplear.
Uma amiga que acaba de entrar como aluna no Instituto de Artes da UFRGS me conta que no IA é proibido assinar as pinturas e desenhos e qualquer trabalho de artes plásticas na frente da tela ou do papel ou seja lá de que suporte for. Assinar, somente atrás, modestamente. Decerto para auxiliar algum organizador bibliotecário no futuro ou para responder a alguém mais insistente, gente antiga do século XX, quem sabe, sobre - só por curiosidade, mesmo! - quem é o autor daquela obra.

Há algumas semanas, também, o vencedor de um importante prêmio de Porto Alegre, o Prêmio Açorianos de Música, foi desclassificado pela melancólica revelação de que sua música era na verdade um plágio descarado de outra música estrangeira, que ele apenas se deu ao trabalho de traduzir e fazer pequenas mudanças aqui e ali.

E, diante do cancelamento da sua premiação que qualquer um com vergonha na cara sumiria do mapa por uns tempos, sem nada comentar, o autor do plágio ainda desafiou a decisão dos jurados, questionando arrogantemente: - Mas o que é, afinal, criação? Eu apenas me inspirei na música do outro autor. Isso. Ou algo assim. Mas o espírito foi esse. O tal espírito de samplear, tão comum também no mundo rap, hip hop e dos DJs. 
Caradura ou sem noção?

Será caradurismo, falta de noção ou noção equivocada de autoria?

Me pergunto: a quem serve essa desvalorização da autoria como algo que torna a obra preciosa, reconhecível, valorosa, referencial, necessária para a evolução do homem, e em última instância, por isso mais vendável?

A quem interessa transformar tudo em um grande balaio de gatos sem autoria? Certamente, a quem leva vantagens com isso. Financeiras e intelectuais.

Os medíocres estão feitos. Basta sentar ao lado de um brilhante. Os marqueteiros estão feitos. Basta arrematar os trabalhos de gente criativa a preço de banana. Aliás, em certos casos, até a banana é mais bem paga que boas ideias.


Banana a preço de idéia.
Lembro de um artigo que li no final dos anos 90, na revista Esquire, sobre as diferenças do gosto pela arte das gerações de milionários, comparando três gerações: a dos milionários dos anos 50, os baby-pignataris, a dos milionários dos anos 80, os yuppies, e a dos milionários dos anos 90, os filhotes de bill-gates.

No que tangia às artes, a geração dos anos 50 reverenciava os grandes pintores, de Da Vinci a Van Gogh. Os novos ricos dos anos 80 preferiam Kandinski, Andy Warhol. Mas a resposta mais supreendente vinha da total indiferença à arte da geração bill-gates, posicionando-se muito mais interessada em adquirir os direitos intelectuais para a internet tanto sobre Da Vinci e Van Gogh quanto sobre Kandinski e Warhol.

Ou seja: a arte só tinha importância pelo valor de revenda ou, no caso, por sua multiplicação à exaustão na rede, na medida do que se podia ganhar dinheiro com ela. E ainda que eles entendessem que ter um Van Gogh fosse importante nesse sentido, tanto lhes fazia, de fato, a obra em si, como criação do Van Gogh ou do pai do badanha.

Lamento muito tudo isso e não consigo projetar um mundo cultural onde as coisas não tenham autores, onde tudo seja anônimo, mercantilizado, transformado inapelavelmente em commodities, genéricos.


Autor, o novo genérico.
O estudioso da cultura, especificamente da cultura da mídia, Douglas Kellner, no livro A Cultura da Mídia (2001) alerta para o fato de que a mídia fornece material para construção de identidade pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnológica capitalista contemporânea. E que é preciso examinar com atenção como a mídia provê recursos para formaçao dessa identidade, como promove reacionarismo ou progresso.

Por isso, quando vejo um dos maiores grupos de comunicação do país, servido por uma agência de publicidade integrante do 18º maior grupo de comunicações do mundo - a DM9Sul, do Grupo ABC -  publicarem um anúncio pretensamente elogiando os jornalistas, mas de fato capando-lhes a autoria, fico pasma e não posso fazer de conta que não vejo.

Agora é oficial? Será o autor, mesmo, uma espécie destinada à extinção?

(Graça Craidy)

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O futebol que ninguém comenta.

ENXURRADA DE BOBAGENS ALUGANDO NOSSO CÉREBRO
A quantidade de lixo que a narração e o comentarismo do futebol produz é algo que me dá vertigem, tamanha a enxurrada de bobagem que é expelida boca afora dessas criaturas que ocupam nossos ouvidos e alugam nossos cérebros antes, durante e depois dos jogos.

Tudo para que ninguém tenha tempo ou atenção de curtir por juizo próprio o jogo a que está assistindo. Nem por um segundo. Não. Necas. Jamé.

Parece que quem narra ou comenta futebol acha que o espectador ou o telespectador ou o rádio-ouvinte, enfim, é um débil mental, um retardado, um abduzido. Que não tem a menor condição de pensar com sua própria cabeça.

Daí o assumido tom pseudamente pedagógico o tempo todo explicando aquilo que você já sabe porque, afinal, você está vendo o jogo, também. Esqueceu?

Esqueceu. O narrador, o comentarista de futebol - essa dupla Batman&Robin dos gramados - finge que está vendo o jogo, mas na verdade está o tempo todo se olhando em um espelho fictício, lambendo o seu umbigo e atingindo orgasmos múltiplos ao escutar sem parar a própria voz. Aos soquinhos. Em melodias que desenham um redondo no ar, depois um redondinho. E pá, ponto.

Mas a niagara de bulshitagem não viceja apenas no comentarismo. Cada vez que um repórter entrevista um jogador saindo do campo no intervalo ou no final do embate, a resposta vem sempre igual. Até a música que a fala do entrevistado entoa é parecida.

Se o sujeito for do time vencedor, gira em torno de o nossotime-uf-teve-uf-garra-e-uf-a-equipe-uf-pegou-uf-junto. Tudo ofegantemente enquanto seca com a manga da camiseta o suor. Se eu sou do marketing da Gessy-Lever ou da Artex, é exatamente nessa hora que ia querer meu merchandising.

Caso o atleta seja do time perdedor, no entanto, a cantilena é outra. Só que igual: a-gente-uf-se-esforçamos-uf-mas-uf-nãofoi-uf-dessa-vez-uf-agora-uf-é-pensar-uf-no próximo. E ali fica, patinando na esteira do bobagismo óbvio que saliva e não engole. Cusp!

Aliás, os repórteres de futebol, na sanha de marcar pontos com seus chefes lá na emissora, cometem as piores atrocidades enfiando os microfones nas feridas dos cristãos que acabaram de perder para os leões.

NARRADOR E COMENTARISTA FALAM PRO ESPELHO
O cara sabe que perdeu. O cara sabe que errou. O cara sabe que podia ter feito isso, aquilo e aquiloutro pra ganhar. Mas não fez. Pqp, ele não fez! Não precisa vir um acacio de microfone em punho e perguntar, justamente: e aê, maicon, conta pra torcida como foi  que você perdeu aquele gol feito?

Se eu sou o jogador, respondo que foi porque eu quis. Que me deu tédio bem naquela hora. Melancolia, spleen, depressão, sabe como? Que me dei conta de repente da imensa pequenez do homem diante da gigantesca obra de Deus. E, principalmente, da finitude do ser futebolístico enquanto mortal.

Talvez rendesse conversas mais divertidas. Porque, francamente, aquele trololó desconexo que acontece todo domingo depois dos jogos, com um bando de adultos sentados em bancadas que parecem abrigar cabeças pensantes, me leva a uma loucura mansa comparável apenas à loucura mansa das pessoas que fazem palavras cruzadas sem parar.

Às vezes fico ali no sofá observando com renovado interesse socioantropológico o desenrolar de programas assim e vou entrando em um parafuso suave que me conduz ao labirinto de um minotauro de chuteiras correndo alucinado atrás do rabo.

Todos eles têm certeza. Todos eles sabem muito bem do que estão falando. Todos eles levam aquilo mais a sério que se estivessem decidindo a terceira guerra mundial. Todos eles parecem intelectuais, gente que pensa, reflete, pondera, pesquisa, compara. Todos eles concluem, baseados em evidências tão gritantes que só você, telespectador, só você, radio-ouvinte, não tinha pensado nisso sozinho, antes, com sua própria minúscula cabecinha.

E nem me venha alegar Nelson Rodrigues, que dois nelsons nao nascem no mesmo lugar.
( Graça Craidy)

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Salvador salva a dor

Salvador salva a dor de ser ocidental
de viver mal sem sal amontoado
na prateleira da cidade grande.

Salvador destapa os poros
acorda o corpo amortecido
expõe a carne água na boca
morder a maçã boa de mil pecados

Salvador é o caminho de volta
à origem bruxa do Oriente
pimenta, dente, saliva língua, gente, quente
uso, fruir, usufruir

Salvador é o fundo primitivo mundo sangue fazendo a pele rosada rubra vida urge, turge, muge
eu, vaca, mulher e peixa
Salvador, tua lembrança não me deixa.

( Salvador, 1992)

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O beijo de Omar.

Omar Izar
Quando ele beija a gaita na boca, todo meu corpo dói, como se todas as dores de ser feliz me comessem viva e me sugassem a alma.

Quando ele beija a gaita na boca, desata os nós do meu avesso e todas as aves adormecidas no torpor do cotidiano voam coração afora, sedentas do indescritível sentimento de ser divino e pobremente humano.

Es como el dolor del placer.

Es como se uma faca, um punhal me cortasse em mil pedaços de mim e me jogasse aos cães da noite, ávidos de sentires.

( 6 de novembro de 2001, bar do Omar Izar, Vila Mariana, Sampa)

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