Minha breve carreira de garota de programa.

Eu trabalhava na criação da J. Walter Thompson, em São Paulo, e o pessoal descolado da agência que vivia metido em boemias e aventuras gastronômicas inventou que lá no centro, em cima do viaduto da 9 de julho, tinha um picadinho de carne com ovo inigualável, imperdível, maravilhoso, que isso, que aquilo, que. E tem que ser hoje!

O único problema é que o tal picadinho com ovo calhava de ser servido em um puteiro chique, o La Boheme,  daqueles que só pra entrar o sujeito já deixa uma promissória assinada. Isto é, o sujeito que vai pra lá comer bem mais que o tal picadinho com ovo. Eu, que só ia pelo frege, nada paguei além.

Pois, tudo combinado, depois do expediente iríamos uma turma duns dez colegas direto da agência para o tal puteiro, pegar lugar cedo porque o lugar lota, disseram, ah e tem música muito boa também, samba de primeira, ao vivo, um grupo muito bacana.  Ok, eu disse. Tô dentro.

Exatamente naquele dia, em pleno verão paulistano, eu tinha vestido uma calça branca de brim e uma camisetinha básica, mais um tenis, talvez um adereço de pescoço ou algo assim, mas nada que me habilitasse a frequentar o tal puteiro chique com trajes comme il faut. Muito menos àquelas alturas do dia, quando não apenas minha calça branca já apresentava nódoas beges cá e lá, fruto da jornada, como meus cabelos - verdade seja dita, sempre naturalmente despenteados - se encontravam ainda mais despenteados. E o rímel, o blush, o batonzinho básico da toillete matinal hace mucho que me haviam me abandonado. No máximo, um dente bem escovado e um brilho apressado nos lábios.

O lugar era normal, eu diria. Nada de muitos chiquês, mas também nada de bagaceiragens - como se fala na minha terra. Normalzinho e discreto. Agora, as moças que circulavam por lá, elas, sim, eram um arraso de chiques, jovens, bonitas, bem vestidas, perfumadas made in France, cabelos impecáveis, saltões dessa altura, pareciam umas borboletas suaves circulando entre as mesas, como um neón andante, inebriando o macharedo assanhado que ficava testosteronando ao seu redor, em bailados de sedução.

Um grande teatro comédia de costumes. Um faz-de-conta, eu diria, fascinante, porque eu atinava que eles, os machos príncipes, agiam como se precisassem seduzir as princesas que ali desfilavam, como se elas só fossem se render não aos seus talões de cheques mas aos seus irresistíveis encantos.

E, naquele clima misto de Dona Anja com Tieta, os músicos castigando no pandeiro e a viola chorando Adoniran, chega meu picadinho e eu, já morta de fome, me atraquei. O picadinho era um recuerdo de inocente casa de mãe: filezinho picado na faca, ovo cozido, uma farofinha torrada encostada ao lado e um necessário arroz branco, leito para mergulhar em suspiros os olhos e depois o garfo ofegante. Nessa ordem.

Eis que ao meu lado, no sofá vermelho de couro contínuo que unia as mesas, senta uma figura saída de um manual do cavalheiro mofado, volume dois. Sujeito alto, magro, de terno listrado, camisa branca, gravata bordô, sapato preto, em torno de uns 60 anos, só faltava o guarda-chuva pra emergir direto do século 19. O homem era durinho, empertigado, sabe aquele tipo que não relaxa?

Olhei pra criatura, desinteressada, e continuei firme no meu picadinho. Minto: desinteressada, não, que meu espírito curioso-antropológico não dorme jamais, eternamente interessado em tipos e comportamentos e quetais.

Pois le digo que o tipo, de mofado só tinha a cara. Não é que o visconde de sabugosa me olha lá de cima da sua cara comprida, me examina descaradamente os seios, o entrepernas, as coxas, o rosto, os cabelos. E me tasca, à queima-roupa, com um certo tonzinho de desprezo na voz:

- Você não trabalha aqui, trabalha?

Surpresa com o ataque e ao mesmo tempo louca pra rir, satisfiz a curiosidade do animal, balançando a cabeça que não, não trabalhava ali, como quem diz pode ir tirando teu cavalinho da chuva.

Cavalinho da chuva? O homenzinho não se contentou.

- Logo vi!

Logo viu o quê,  gerivá sem folha?- pensei.

- Muito relaxada! - ele completou.

Eu rolava de gargalhar por dentro. Que cena, meus senhores, que cena! Se papai me visse agora, rejeitada pelo visconde de sabugosa só porque minha calça branca não é mais branca? Só porque meu sapato é baixo? Só porque...

O homem não calava aquela boca fininha dele que parecia uma abertura de jogar a chave em caixa de correspondência.

-  Mas se você tomasse um bom banho -  ele insistiu -  se arrumasse, se pintasse, um bom sapato de salto, um bom vestido, um bom perfume, ajeitasse esses cabelos daí....- arrematou meu Pigmaleão - você até que ia se dar bem! Sabia?

Não, não sabia. Mas, declinei.

( Graça Craidy)

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44 comentários:

  1. Silvia Regina Lopes Guimarães escreveu:

    Graça....querida....eu ri que doeu meu estômago, que ta vazio e ficou louco pelo picadinho, hahahahahha, mas tá muito boa guria, amei!!!!!

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  2. Lilian Honda escreveu:

    Mas que sabugo desaforado!!! Adorei...

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  3. Suzane Maia escreveu:

    Ainda te chamou de sujinha, conte Gracinha!! Hahahaha. É sempre uma delícia ler o que escreves!

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  4. Santiago Neltair Abreu escreveu:

    belo causo, Graca!! cuá cuá cuá

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  5. Graça querida, melhor o seu causo só se tivesse sido contado num daqueles cafés de meio de tarde de antigamente!

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    1. ah, aqueles cafes vagabondes, quando a gente mandava e desmandava no nosso tempo. eitcha! beijinho, beibinha querida1

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. queremos picadinho!!! Denise Grecco VAlente( não sei mudar essa¨&%$#@! de perfil)

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  8. bons tempos!!! bjs

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  9. Bah!, que delícia de texto, guria ! O antro em questã era o La Bohème, na Álvaro de Carvalho 160 e que, de fato, servia um dos três melhores picadinhos de Piratininga (além dos antros Old Friends - que precedeu o Bohème, e o Café Photo, que sucedeu). Tocavam lá o Nereu, antológico pandeiro do Trio Mocotó, acompanhado pelo Maranhão ou o Fabião, belos sambistas-violonistas. Houve uma noite em que tomei uns bons whiskies com Agepê ("...faz de conta que sou o primeiro..."), quem, mal sabíamos, estava de partida desta encarnação... Bjs saudosos!

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    1. Charles querido! Só tu mesmo pra lembrar de tantos detalhes. Eras o guru da nossa malandragem...hahahah! Beijos saudosos, tb!

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  10. Henrique Mendel escreveu:

    Gracinha nota mil, suas crônicas salvam meu dia... - Muito relaxada! que sensacional hahahahaha

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  11. Cintia Astolfi escreveu:

    Show de bola prima!!!

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  12. Vera Ligia Souza escreveu:

    La Boheme, fomos várias vezes comer o picadinho delicioso. Bosn tempos, saudades de tds. bjs

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  13. Isabelle Leonardos escreveu:
    Graça minha primeira dupla! Responsavel pelo enriquecimento do meu restrito vocabulario "modelito 19".
    Saudades daqueles tempos! Beijo grande

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  14. Itagiba Cobra Cobra escreveu:

    Sensacional .Centro Boemio de Sampa.Vinicius de Moraes e outros .Assiduos Frequentadores .Amigos que ficaram noivos lá .Cozinha de Primeira .Bjo

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  15. bom d+! esse doin antropológico que não se desarma jamais... de deixar a boca aberta!... risco de uma chave cair dentro, kkk!
    zeca

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  16. Nara Fogaca escreveu:

    Graça Craidy. Tu só faltou rodar bolsinha, né? Ou não faltou?

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  17. Faltou...Mas, tb, agora, acho tarde pra começar. ;-)))

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  18. Milena Weber escreveu:
    Muuittto booom !

    Que assim seja

    Bj

    milena

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  19. Bem escrito, espirituoso, divertido: parabéns, Graça!

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  20. Luiz Augusto Cama escreveu:

    Oi, Graça

    Gostei muuuuito das histórias do La Boheme (que ficava embaixo do viaduto 9 de Julho, naquela ladeirinha...) e do Ron Travisano, o sócio do Jerry Dela Femina, autor de um livro brilhante e divertidíssimo de 1972 ("From those wonderful guys who gave you Pearl Harbour"), eu o comprei em NY na época, e que a Cultrix lançou em tradução no Brasil agora - 40 anos depois - com enorme MAD MEN na capa para tentar aproveitar a onda da série...

    Tuas crônicas são saborosas.

    Com um beijo do teu velho "professor" e eterno admirador.

    Cama;.

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    1. Querido mestre Cama, adorei a visita! E adorei tb a correção do local: de cima para embaixo do viaduto, na ladeirinha....;-) Nada como as testemunhas da História!
      Beijo da tua velha aluna e eterna admiradora.

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  21. Helio Colaço escreveu:

    Minha relaxada Gracinha

    Gerivá sem folha !?... Essa foi boa.
    Ti amo.

    Hélio

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    1. Helio querido amigo, essa do gerivá sem folha é lá de Ijuí. a gente usava sem piedade pra praticar bulliyng com criaturas magérrimas e altésimas...;-) depois fui saber que gerivá é um tipo de coqueiro. Q tal, hein? Aliás, gerivá sem folha era parceira de outra bulliyngnagem, pra quando alguem era dentuço e orelhudo: nhoc nhoc (dos dentes de coelho)...orelha de bodoque ( pra quem não sabe, é a forquilha do estilingue). ;-) coisa muito politicamente incorreta!

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  22. Samantha Diniz escreveu:

    ADOREIIIIIIIIIIIIIIIIIII GRAÇAAAAAAAAAAAAAAAAA!!
    O MÁXIMO!! BJOSSSS
    SAUDADES

    SAMANTHA

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  23. José Carlos Piedade escreveu:

    Graça, como sempre um prazer ler os seus escritos!
    Com uma turma da DPZ eu também frequentava o La Boheme que chamávamos de "Picadinho com puta".
    Beijos,
    JCP.

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    1. ;-) Pois, parece que o mundo das moças de vida fácil era especialista em comidinhas deliciosas, zezinho...Lembrei agora do Bar das Putas, ali naquela esquina da Consolaçaozona, que servia uma chuleta com fritas inesquecível, tb.

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    2. Miguel Arcanjo Terra escreveu:

      Adorei, Graça, a sua breve carreira de garota de programa.

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  24. Ivan Caires escreveu:

    KKKKKKKK...Adorei o texto e a história, mas o título é imbatível: Graça Surfistona!! É muito bom isso. rsrsr

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  25. Cristina Goidanich de Castro escreveu:

    Oi Graça! Hoje é quinta e dei boas risadas,"daquelas sem relógio", dos teus textos. ótimos.Daqui pra frente,ás segundas curto a Graça cantora e desenhista e outro dia qualquer da semana a Graça Blogueira.Fiquei imaginando o que o visconde de sabugosa diria ao te ver surgir no puteiro do picadinho com o vestido dos botões que teimam em desabotoar.

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    1. Oi, Cris! Acho que o visconde ia me passar um pito de novo, tipo: relaxada e descuidada! hahahah! beijo!

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  26. Guilherme Azevedo escreveu:

    bora pro jornalirismo! bem divertido!

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  27. Sandra Terra escreveu:

    Voce não existe!!!!!!!!!!!!!!!!!!!111
    Gosto muito de oc~e. beijoaks

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  28. Sara Seadi escreveu:

    kkkkkkk genial, tu me mata de tanto rir!!!

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  29. Adriana Gragnani escreveu:

    Um autógrafo, por favor!

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  30. Doris Hegedus Grossman escreveu:

    GRAça Querendo ou naõ (EU QUERO ) somos meias parentas!! Que orgulho ! e partilho. Obrigada.

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  31. Edmar Salles escreveu:

    Já li, Graça. Maravilhosa, ri muito te imaginando lá...

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