O jornalista, a publicitária e a noite das garrafadas.


Acht, que o Bier Klaus, aquele bar alemão no comecinho da Dr. Timóteo, em Porto Alegre, era uma delícia!

A gente se reunia por lá toda semana pra saborear um sanduíche aberto (que os paulistas chamam de canapé) feito delicadamente com pão preto rústico cortado em fatias fininhas, tedescamente engalanadas com salame, lombinho ou pernil bem suculento, cenoura, pepino em conserva, tomate e ovo cozido pra arrematar. Tudo temperado com uma boa mostarda escura, daquelas de arrancar lágrimas do vivente.

Quem comandava o lugar era um casal adorável de alemães, já de meia idade, tio Walter e sua esposa que, se não me engano, eram gente boa lá das bandas de Ijuí, minha cidade natal, como todos sabem, terra de legítimos alemães, uma vez!

Uma noite, estávamos todos no bar do tio Walter, numa mesona de umas 20 pessoas, por aí, montes de gente proseando, bebendo chope, vinho, comidinhas da frau do tio Walter, e entre nós, um certo jornalista de Porto Alegre metido a colunista, que se arrogava a comandar os destinos da mesa, não sei bem baseado em que salvo-conduto, visto que a maioria da mesa era de amigos que se conheciam entre si e ele, certo que não era amigo nosso. Provavelmente, tinha vindo parar ali acompanhando alguma moça.

Sabe aquelas pessoas que usam dois nomes e dois sobrenomes pros outros pensarem que elas são aristocratas? Que se apresentam entre pessoas físicas com língua de pessoa jurídica, vomitando nomes e sobrenomes: Fulando Beltrano de Tal de Tal, muito prazer!

Nhé!

Como diz a gurizada hoje, o homem era um  fazido de marca maior, tipinho metido a sebo, arrogantezinho que só. Porque era jornalista e colunista (diga-se, de uma coluna mediocrérrima), se achava o rei da cocada preta. Quer dizer, rei da cocada preta pra turma dele, que eu, só de saber que alguém se acha o rei da cocada preta já fico louca pra cocar a criatura bem no meio dos olhos.

O talzinho, por  sinal, estava ridiculamente vestido com um paletó branco tipo summer, imagina, vestir summer pra  ir tomar chope no tio Walter? Arschloch! O traje já entregava a babaquice do sujeito.

Estávamos ali naquela mini festa de babette e se junta a nós um violeiro com sua viola e começa a dedilhar acordezinhos básicos, provocando os possíveis cantores da roda. Não me aguentei. Chegadíssima numa viola e numa boemia, modéstia à parte com um repertório bem legal e voz até que bem afinada, me aligeirei em puxar uma cadeira pra perto do violeiro.

E comecei a cantarolar baixinho com ele, naquele momento mágico em que só quem mexe com música vai entender do que estou falando, quando as almas meio que vão se sintonizando num dial quântico, olho no olho, entrega mútua, os espíritos se ajeitando em um pentagrama invisível onde tudo que a harmonia deseja é se aquerenciar. E a garganta vai se polindo em buscas suaves da melhor afinação, da respiração na medida e, principalmente, do sentimento, que sem sentimento tudo é só consumo, não dá pra ser feliz.

Pués, tô ali naquela previazinha sencilla e escuto o rapaz do summer branco mandar lá do lugar dele que a gente ficasse quieto, que ele não tava a fim de som na mesa. Argumentei que ia ser bacana, só alegria, quando ele cometeu o grande erro da noite. Ordenou que eu voltasse pro meu lugar e que fosse me foder. Pior: ele ofendeu meus ancestrais libaneses que fizeram tanto amor por tantos séculos pra que eu tivesse este nariz assim arabesco, grande, generoso. O desavisado arrematou o vá-se-foder com " e vê se senta em cima desse nariz e cala a boca!"

Pra quê!... Me lembro como se fosse hoje. Eu estava, como sempre, tomando um vinhozinho, e tinha levado comigo a garrafa e a taça, quando me mudei pra perto do violeiro. Ao escutar o desaforo daquele idiota enfatiotado de branco, parece que me baixou um santo ao mesmo tempo calmo e endemoniado. Sem pensar duas vezes, peguei a garrafa de vinho que estava pela metade e me postei de pé bem atrás do nojento, como um anjo do mal, e comecei a derramar devagarinho, no topo da cabeça dele, todo o vinho que ainda restava na garrafa. Que glória!

Aquele vinho maravilhosamente bordô se jorrava do gargalo feito cachoeira mansa. Da cabeça do cara, escorria para o rosto e emendava nos ombros do paletó branco e descia rasgando caminho abaixo na gola, manchando bolso, peito, gravata, indo morrer melancolicamente no bico do sapato.

Acabado o vinho, bati a garrafa na mesa, como quem bota um ponto final, como quem se dá por satisfeito. E falei pro tio Walter: - desculpa, tio, amanhã eu volto pra pagar minha conta!

Todo mundo ao redor mudo, pasmado, sem entender a razão do furdunco. Que escândalo!  O tal jornalista, também. Ficou tão estupefato, tão bobo, tão tonto com a surpresa e o ineditismo do acontecido que, a princípio, não reagiu, parado, patético, sangrando vinho pela cabeça como se tivesse levado um tiro. Ele não conseguia atinar de onde tinha saído tudo aquilo.

Quando eu me dirigia vitoriosa pra porta de saída do bar, no entanto, o tipo se acordou enfurecido, levantou impetuosamente e se veio feito boiada desgovernada pra me triturar, me fazer em pedacinhos, me cobrar a humilhação, destruído todo o inútil charme do seu estúpido summer.

Mastigando um filhadumapu entredentes, ele jogou o corpo pra cima pra me alcançar, mas não contava com a suprema presença de espírito da Maninha Aragón, redatora publicitária minha amiga, colega querida da Marca Propaganda.

No que o monstro do lago ness levantou, ela só usou a cabeça. E um único pé. No meio do caminho do cara tinha um pé da Maninha. No meio do caminho tinha um pé. E foi bem ali, no pé da Maninha no meio do caminho, que o gnu ensandecido tropicou feito uma vaca ébria e se esborrachou no chão feito uma jaca podre.

Foi o que deu pra eu apressar o passo e me escapar porta afora, me enfiando rapidamente na minha super Brasília azul que zarpou a mil pelo brasil rumo à minha casa na Salgado Filho, onde me abriguei junto dos meus irmãos, às gargalhadas, com o coração saindo pela goela, mas a alma lavada. Toma, fdp, garganteia agora!

No dia seguinte fui pagar minha conta no tio Walter. E nunca mais vi o dono do tal summer ensanguentado de vinho de uma noitada malsã. Mas garanto que o desinfeliz jamais esqueceu dessa história. Ou, pelo menos, nunca mais vestiu aquele summer cavernoso pra tomar chope em bares alemães.

( Graça Craidy)
Ilustração: http://vousairparaveroceu.blogspot.com.br/

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Minha breve carreira de garota de programa.

Eu trabalhava na criação da J. Walter Thompson, em São Paulo, e o pessoal descolado da agência que vivia metido em boemias e aventuras gastronômicas inventou que lá no centro, em cima do viaduto da 9 de julho, tinha um picadinho de carne com ovo inigualável, imperdível, maravilhoso, que isso, que aquilo, que. E tem que ser hoje!

O único problema é que o tal picadinho com ovo calhava de ser servido em um puteiro chique, o La Boheme,  daqueles que só pra entrar o sujeito já deixa uma promissória assinada. Isto é, o sujeito que vai pra lá comer bem mais que o tal picadinho com ovo. Eu, que só ia pelo frege, nada paguei além.

Pois, tudo combinado, depois do expediente iríamos uma turma duns dez colegas direto da agência para o tal puteiro, pegar lugar cedo porque o lugar lota, disseram, ah e tem música muito boa também, samba de primeira, ao vivo, um grupo muito bacana.  Ok, eu disse. Tô dentro.

Exatamente naquele dia, em pleno verão paulistano, eu tinha vestido uma calça branca de brim e uma camisetinha básica, mais um tenis, talvez um adereço de pescoço ou algo assim, mas nada que me habilitasse a frequentar o tal puteiro chique com trajes comme il faut. Muito menos àquelas alturas do dia, quando não apenas minha calça branca já apresentava nódoas beges cá e lá, fruto da jornada, como meus cabelos - verdade seja dita, sempre naturalmente despenteados - se encontravam ainda mais despenteados. E o rímel, o blush, o batonzinho básico da toillete matinal hace mucho que me haviam me abandonado. No máximo, um dente bem escovado e um brilho apressado nos lábios.

O lugar era normal, eu diria. Nada de muitos chiquês, mas também nada de bagaceiragens - como se fala na minha terra. Normalzinho e discreto. Agora, as moças que circulavam por lá, elas, sim, eram um arraso de chiques, jovens, bonitas, bem vestidas, perfumadas made in France, cabelos impecáveis, saltões dessa altura, pareciam umas borboletas suaves circulando entre as mesas, como um neón andante, inebriando o macharedo assanhado que ficava testosteronando ao seu redor, em bailados de sedução.

Um grande teatro comédia de costumes. Um faz-de-conta, eu diria, fascinante, porque eu atinava que eles, os machos príncipes, agiam como se precisassem seduzir as princesas que ali desfilavam, como se elas só fossem se render não aos seus talões de cheques mas aos seus irresistíveis encantos.

E, naquele clima misto de Dona Anja com Tieta, os músicos castigando no pandeiro e a viola chorando Adoniran, chega meu picadinho e eu, já morta de fome, me atraquei. O picadinho era um recuerdo de inocente casa de mãe: filezinho picado na faca, ovo cozido, uma farofinha torrada encostada ao lado e um necessário arroz branco, leito para mergulhar em suspiros os olhos e depois o garfo ofegante. Nessa ordem.

Eis que ao meu lado, no sofá vermelho de couro contínuo que unia as mesas, senta uma figura saída de um manual do cavalheiro mofado, volume dois. Sujeito alto, magro, de terno listrado, camisa branca, gravata bordô, sapato preto, em torno de uns 60 anos, só faltava o guarda-chuva pra emergir direto do século 19. O homem era durinho, empertigado, sabe aquele tipo que não relaxa?

Olhei pra criatura, desinteressada, e continuei firme no meu picadinho. Minto: desinteressada, não, que meu espírito curioso-antropológico não dorme jamais, eternamente interessado em tipos e comportamentos e quetais.

Pois le digo que o tipo, de mofado só tinha a cara. Não é que o visconde de sabugosa me olha lá de cima da sua cara comprida, me examina descaradamente os seios, o entrepernas, as coxas, o rosto, os cabelos. E me tasca, à queima-roupa, com um certo tonzinho de desprezo na voz:

- Você não trabalha aqui, trabalha?

Surpresa com o ataque e ao mesmo tempo louca pra rir, satisfiz a curiosidade do animal, balançando a cabeça que não, não trabalhava ali, como quem diz pode ir tirando teu cavalinho da chuva.

Cavalinho da chuva? O homenzinho não se contentou.

- Logo vi!

Logo viu o quê,  gerivá sem folha?- pensei.

- Muito relaxada! - ele completou.

Eu rolava de gargalhar por dentro. Que cena, meus senhores, que cena! Se papai me visse agora, rejeitada pelo visconde de sabugosa só porque minha calça branca não é mais branca? Só porque meu sapato é baixo? Só porque...

O homem não calava aquela boca fininha dele que parecia uma abertura de jogar a chave em caixa de correspondência.

-  Mas se você tomasse um bom banho -  ele insistiu -  se arrumasse, se pintasse, um bom sapato de salto, um bom vestido, um bom perfume, ajeitasse esses cabelos daí....- arrematou meu Pigmaleão - você até que ia se dar bem! Sabia?

Não, não sabia. Mas, declinei.

( Graça Craidy)

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