O espantoso, bizarro e escalafobético dia em que meu pai revelou afinal de onde vinham os bebês.

- Pai, qual a diferença entre um boi e um touro? perguntou inocentemente meu irmão caçula, do alto do seu enxoval de porquês, aos 3 anos de idade.

Antes não tivesse perguntado!

Meu pai, um experiente médico obstetra - "médico de senhoras", como dizia a plaquinha do seu consultório - decidiu, não sei por que cargas d'água, que tinha chegado enfim a esperada hora de revelar aos seus quatro filhos, dois meninos e duas meninas com idades entre 3 e 9 anos, de onde vinham os bebês.

Uma decisão tão nonsense, equivocada e intempestiva que até hoje eu vago insone em meus pensamentos da infância indagando aos céus: ó, Deus, me esclarece, por favor, o que tem a ver boi e touro com criança nascendo?

Jamais vou esquecer. Tínhamos acabado de jantar, em uma afável noite de outono, e eu lembro de estar já na sobremesa, atracada com a metade de uma laranja de umbigo.

E foi atrás dela que me escondi na cena a seguir, das mais bizarras da minha infância, quando dr. João trocou olhares cúmplices com minha mãe e, muito sério e compenetrado, nos conduziu ao recôndito mais reservado da casa, espaço proibidíssimo para trânsito familiar: o seu gabinete-consultório, onde atendia às suas pacientes.

Os móveis lá eram lindíssimos e assustadores. Altos, pesados, imponentes, de madeira esculpida, me representavam muralhas, eu mal e mal encostava o nariz no topo da escrivaninha.

Parecia uma aula de colégio, só que sem colégio. Meu pai foi falando aquela coisarada que eu não entendi nada, que isso, que aquilo, que aquilo outro, que entra por aqui, que sai por ali, que depois cresce e sei mais o quê.

Ao mesmo tempo ele ia abrindo livros grossos de capa dura verde com letras douradas na capa, e os livros iam revelando imagens horríveis e assustadoras de gente - no meu entender - com o lado de dentro estrebuchado.

E o mais espantoso de tudo: dentro do tal estrebuchamento tinha uma  criancinha mais apertada que rato em guampa, toda retorcida, coitadinha. Acho que tu não entendeste bem: a criancinha estava dentro da barriga da criatura do desenho!!!

Como assim, dentro?

Era uma coisa tão tão tão inconcebível, que se não fosse meu pai falando e se não existisse o desenho ali esmiuçadinho, juro que eu não acreditava. Por detrás da minha laranja, eu espiava aquilo com os olhos arregalados e sem dizer uma palavra. Nem eu, nem meus irmãos. Imagina, se com uma humilde perguntinha de boi e touro, meu mano tinha desencadeado aquela polvorosa horrenda, que dirá se a gente ousasse perguntar coisas veramente cabeludas.

E meu pai se esbaforia, mostrando os desenhos e, flap flap, virava páginas e mostrava outros piores ainda e, flap flap, voltava. Deus meu, aquilo não acabava era nunca! Nós quatro, catatônicos, ao redor daquela escrivaninha poderosa e à mercê daquele mestre enlouquecido na sua digressão biológicoterrorista.

Depois de um tempo muito comprido que não sei dizer quanto, meu pai se deu por satisfeito e nos liberou pra brincar na calçada ali na frente, que era o brinquedo bom da época. E nós saímos em escancarada fuga, aliviadíssimos por nos livrarmos daquele pesadelo acontecido antes de dormir.

O mais estranho de tudo é que nenhum dos quatro irmãos tocou no assunto depois, entendendo tacitamente aquilo como mais uma das muitas loucuras incompreensíveis dos adultos. E meu irmãozinho, por sinal, continuou sem saber a diferença entre boi e touro.

Enfim, a minha descrença naquelas cenas de terror explícito continuou até que uma fonte mais fidedigna - leia-se, minha melhor amiguinha do colégio - me contou que alguém tinha cochichado pra ela que pepepepe pepepe ali por onde a gente faz xixi.

- O quê?!

Foi um choque de novo, mas, agora, um choque de nojo. Total e completo. Porque nos desenhos do meu pai eu não tinha atinado que a tal vulvavagina era o por-onde-a-gente-faz-xixi.  Eca! E a cegonha, alguém por favor, me diga, onde anda em uma hora dessas?

Confesso que nunca superei o sentimento aflitivo de saber que os pobres bebês passam ali por aquele cochicholo tão apertado e tão pouco nobre.  Aliás, pobres bebês e pobres mamães! Por tudo isso, podem me falar com lágrimas nos olhos da ternura, beleza e sacralidade do parto normal, que não adianta: me vem de novo a mesma velha e esquisita sensação. (Graça Craidy)

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14 comentários:

  1. Suzane Maia escreveu:

    Hahahahaha. Coitadinhos! Muito bom, conte Gracinha!

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  2. Doris Hegedus Grossman escreveu:

    ‎:)))))))))))) Graça!!!!! Eu conhecí teu pai, entaõ rio mais ainda:))))))) Teu blog é simplesmente fanástico!!!!!!!! E eu partilho ele.

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  3. Cintia Astolfi escreveu:

    Sensacional.Fiquei imaginando a cena.KKKKKK.Beijokas.

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  4. Patrizia Donatella Streparava escreveu:

    Nunca conheci seu pai mas posso visualizar a cena

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  5. Circe Burmann Viecili escreveu:

    Só imagino o Dr. João dando essas explicações....

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  6. Patrizia Donatella Streparava escreveu:

    To lendo e relendo e quanto mais leio, mais rio...e mais penso como foi que nossa geracao sobreviveu ao terror...bem, nao a toa fizemos a alegria dos terapeutas.

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  7. Tão simples e tão complicado o universo infantil para os adultos, né?

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  8. Patricia Rosa escreveu:

    Escalafobético?? Adorei!

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  9. Jose Carlos Piedade escreveu:

    ÓTIMO!
    Beijos.
    JCP.

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  10. So tu Graça para contar as coisas mais extraordinarias de nossas vidas desse jeito.....Parece que o filme passou na minha frente.Enxerguei tio João e vvcs quatro num lance de muita saudade Bjs Saudades de td isso.

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  11. Nelson Cury escreveu:


    Tio João!Eu sinto falta de poucas pessoas.Uma delas é ele.

    Beijo

    Nelson

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  12. paulo craidy escreveu:

    mas é prá ser assim mesmo - pão pão queijo queijo.

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  13. Marly Revuelta escreveu:

    So agora peguei um tempinho para ler. Adorei!! Vc deveria escrever livros também pois este é o teu talento. bj

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