Artigo: Pierre Lévy, o Diderot-D'Alembert do século 21.



A palavra "otimizar" - da língua da produção, do business, do mercado que persegue visceralmente a chamada excelência de desempenho para garantir eficiência e lucro aos seus acionistas - freqüenta o discurso epistemológico do filósofo francês nascido na Tunísia Pierre Levy, sem nenhum pudor acadêmico.

Otimizar traduz a sua ambiciosa utopia de inteligência verdadeiramente coletiva, de "todos para todos": criar uma espécie de enciclopédia semântica tão gigantesca, tão abrangente, tão plural, que consiga abarcar toda a diversidade de significados das multilínguas, multietnias, multiculturas do planeta.

" O que nos diferencia do homem pré-histórico?" - pergunta Lévy ( 2007a). " A memória acumulada" - ele completa. "O salto vem da memória".

Por isso Lévy (2007a) projeta em um futuro bastante próximo, - 2015, segundo seus slides - uma "máquina sintática universal", com capacidade para fazer arranjos e rearranjos de significantes no ecossistema da memória simbólica da humanidade, sintetizando complexamente diversidade com universalidade, ao cobrir infinitos caminhos semânticos, diferentes pontos de vista sobre a realidade, sem excluir nenhum olhar.

Assim, um novo sistema de significantes com coordenadas universais conterá a imensa memória mundial, indexando todo o conhecimento.

Seu raciocínio é evolutivo. Lévy ( 2007a) toma distância no tempo para trás a partir da descoberta da escrita até a web de hoje, e entende que no próximo degrau evolutivo, a rede mundial passará de um estado atual lógico, binário, leitora de cadeias de caracteres e de interconexão de dados, a um estágio superior hermenêutico, de web semântica, de interconexão de conceitos.

Historicamente, a posse da informação sempre significou a posse do poder. Dos mistérios guardados a sete chaves da Igreja Católica à democratização da leitura da Bíblia permitida pela Reforma de Lutero aliada à descoberta de Gutemberg, conhecer significou literalmente dominar, intermediar, evoluir, enriquecer.

No século 18, os intelectuais filósofos iluministas D'Alembert e Diderot criaram a "Encyclopédie", com 35 volumes e milhares de verbetes que continham todos os dados sobre as ciências naturais e humanas da época. Essa supermega enciclopédia tinha a missão de democratizar o saber, permitindo surgir o "cidadão esclarecido", que substituiria a fé, a superstição, o êxtase religioso e a repressão dos governantes absolutistas pelo conhecimento, pela capacidade de raciocínio autônomo e pela auto-responsabilidade.

Três seculos depois, em plena era da internet, outro francês luta por uma nova enciclopédia, milhões de vezes mais abrangente que a de Diderot e D'Alembert. Na utopia de Lévy (2007a), é imensurável o quanto de poder será democratizado agora com a multiplicação de conhecimento provocada por essa nova espécie de enciclopédia universal onde todos terão acesso à informação desintermediada.

Mas não se trata apenas de quantidade. Melhor seria dizer de busca de uma linguagem universal, espécie de - como chama o próprio Levy - "esperanto digital" organizador do caos da web 1.0, que nutriu a rede de uma quantidade enorme de dados sem hierarquia; ou, também, do aperfeiçoamento da web 2.0, que aumentou a interrelação, a produção coletiva de conhecimento. A web 3.0 estaria mais aparentada com o quesito relevância e com a cada vez mais apurada customização da navegação, buscando a universalidade do conhecimento. Sai o mero dado, entra o conceito.

A web semântica extrapolaria a simples resposta adicionando respostas inteligentes, relevantes, baseadas em navegações anteriores, em categorias registradas na sua memória, em recombinações e associações que façam sentido ao usuário como já se vê hoje em início de operação, no Facebook. Feito a rede soubesse antecipadamente, adivinhasse o que o internauta deseja.

A grande dificuldade para essa " inteligência possível no século 21", segundo Lévy (2007a), é o que o filósofo Edgar Morin (2004) chama de " separação dos saberes": a falta de sinergia entre as disciplinas, cada saber tentando preservar a última fronteira da sua competência para justificar a sua existência isolada.

Lévy (2007a) explica que não há como encontrar a universalidade na diversidade se as ciências, principalmente as ciências humanas, não estabelecerem um consenso sobre as suas noções, buscando
uma mesma língua multidisciplinar, um mesmo sistema de coordenadas.

Ele elogia as ciências da natureza onde, por exemplo, oxigênio é sempre " O2". Já a categoria "comunidade", desafia Lévy (2007a), é problemática, porque suscita as mais variadas explicações e sistemas de medidas, do psicólogo ao antropólogo, do sociólogo ao historiador, com diferentes noções e valorações.

A função do intelectual.
Fiel à sua histórica posição de integrado às novas tecnologias, Lévy sustenta a sua indefectível fé na web e no homem, principalmente no homem dito por ele "intelectual".

Ao intelectual, ele atribui o papel orgânico neogramsciano de influir no destino da humanidade, pela "otimização do conhecimento" que circula na rede mundial de computadores.

Na Revista Famecos #33 ( 2007b:13), Lévy reitera, inclusive, que, em todas as culturas, o grande papel dos intelectuais é o de estudar os sistemas simbólicos com os quais as comunidades vivem em simbiose e preservar a sua articulação, seu bom andamento e seu aperfeiçoamento.

"A digitalização dos documentos, sua interconexão em um espaço virtual ubiqüitário e as possibilidades de tratamento destes documentos anunciam uma mutação cultural de grande amplitude (...) Mais do que assistir de fora esta mutação, os intelectuais devem, na minha opinião, tomar a dianteira" (2007b:14), afirma Lévy.

Para ele (2007b), os intelectuais são como os "luthiers" - artesãos que constróem instrumentos musicais - que produzem, mantêm e aperfeiçoam o intelecto possível, a instrumentação simbólica, das comunidades pelas quais trabalham (2007:17).

No século 21, Lévy conclama a que esses luthiers de agora instaurem uma " quarta camada" na web , a da " noosfera" - para usar o termo de Teilhard de Chardin, que significa "esfera da mente/consciência humana coletiva" - chamada por ele de "camada semântica" (2007b:20).

Otimista, não. Anti-ceticista
Uma ala dos teóricos das ciências humanas critica o trabalho de Lévy, por razões tão diversas quanto comprometidas. Aos frankfurtianos que o acusam de ingênuo, "levy-ano", otimista e totalitarista, Lévy (2007a) contesta, apoiado em Karl Popper e sua condenação do ceticismo, afirmando que não é um otimista, mas um anti-ceticista.

Ele ressalta que sua busca do universalismo nada mais é que uma busca de apreender "uma unidade subjacente que traduza a diversidade". E aproveita para devolver a crítica aos céticos que o criticam, afirmando popperianamente que com o cético não se aprende nada, pois o ceticismo nunca precisa provar nada, é apenas e meramente a negação.

" Não é suficiente que os homens troquem muitas informações para que se compreendam melhor", refuta o sociólogo Dominique Wolton( 2004:150), em resposta à inundação de dados na internet que Lévy elogia. "São os planos culturais e sociais de interpretação das informações que contam, não o volume ou a diversidade dessas informações", explica o elétrico Wolton. E joga mais um dardo: " Qual experiência da realidade sobra quando a atividade econômica, social, cultural, escolar é reduzida à gestão de signos?" (2004:155).

Mas, aos que como Wolton o acusam de mitificador do poder da internet como cimento social, indutor de que informação é o mesmo que comunicação, sem alertar sobre os perigos da ausência de regulação, da desprivatização, do panoptismo, da homogeneização, ou, ainda, de uma verdade sem doma que troteia nas estradas digitais, Lévy (2007a) responde, bem mais generoso do que seus detratores, que a idéia de uma única verdade é que é totalitarista, não a dele que busca abarcar toda diversidade. E mais: que a variedade e a multiplicidade das fontes é muito mais favorável que desfavorável à verdade.

Lévy (2007a) afirma, ainda, que a internet não é um meio de supressão do erro, mas um meio poderoso de busca da verdade, e ressalta que a verdade, aliás, não só na internet como em qualquer outro meio, é sempre ilusória, porque processo. E encerra, mais pós-modernamente, impossível: - " Qual a verdade? A verdade é a verdade que interessa a você".

REFERÊNCIAS:

LÉVY, Pierre - Anotações do seminário IEML ( Information Economy Meta Language) for transformative knowledge management - ministrado na PUCRS,agosto, 2007a

LÉVY, Pierre - A inteligência possível do século XXI, in Os intelectuais e as novas tecnologias, Revista FAMECOS, Mídia, cultura e tecnologia, # 33,p. 13-20, agosto 2007b

WOLTON, Dominique - Pensar a Internet, in MARTINS, Francisco Menezes et SILVA, Juremir Machado da, A genealogia do virtual, Comunicação, cultura e tecnologias do imaginário.Porto Alegre: Sulina, 2004.

(Graça Craidy)

SE VOCE GOSTOU DESTE POST, TALVEZ SE INTERESSE POR ESTE.

2 comentários:

  1. Vera Lucia Bemvenuti escreveu:

    Graça, que belo material para nossa reflexão sobre esse futuro que nos espera - tecnologico e assutador( para minha geração)
    Vou compartilhar Tenho muitos alunos no meu facebook que vçao gostar de ler. Abçs

    ResponderExcluir
  2. Vera Lucia Bemvenuti escreveu:

    Leitura obrigatoria para pensar no futuro. Texto maravilhoso da Graça Craidy

    ResponderExcluir

DESTAQUE

MEU QUERIDO DEMÔNIO DA TASMÂNIA

Ano passado, passei 40 dias em Roma, estudando pintura e frequentando museus e galerias de arte. Não me lembro em nenhum momento de o nosso ...

MAIS LIDAS