Canto de sabiá-fêmea em dia de domingo.

Onde meu sabiá-macho? Onde meu sabiá-macho? - ela acordou naquele domingo desgraçadamente ensolarado, tateando a ausência dele no macio de suas coxas desacompanhadas.

Já não podia mais respirar sozinha, seu ar descosturado do pulmão dele vazava a tristeza do seu oco de não poder redemoinhar em suas veias, se entontecer inebriada dos seus percorridos, do seu sabiá-macho, ele tão distante, sabiá de outros matos.

Me morra, meu sabiá amado, que cada minuto longe de ti me mata um pouco, me abrevia o canto, me descompassa o júbilo desse sol tapa na cara, eu sabiá sozinha de ti, meia-sabiá.

Que ninho é esse, melancólica mortalha que não ruste nem ruge o desaforo caboclo de me saciar a fome?

Que teia é essa que me enrosca no teu pensado feito melaço de roça boa e não me derruba de costas na beira da lama do açude e rola rindo comigo moleque safado de primários ais, que não me morde o pescoço, não enfia a cara embaixo de minha asa nem me morde o seio, nem não me lambe o sal?

Sou pássara de cidade, meu sabiá-macho, triste de existir assim burlando a peia, fingindo chilreares filhos de bem-nutranças, mas, não, tudo ânsia não cumprida, tua sabiá queria agora só o cheiro acre da tua asa mal-dormida, o roçado da tua barba por fazer, o privilégio de ser teu primeiro olhar quando acordasses de manhã, aquela hora mágica quando tu vens do mundo dos sonhos e, eu queria, assim, pular do teu sonhado pro teu real feito magia, quando subisses as pálpebras eu te currando os olhos com o sol do meu riso bom de existir ali, naquele pendurado do momento, congelada hora.

Ah, neste vazio je suis triste porquoi tu me manques, meu sabiá, gosto disso do tu-me-manque porque fala saudade tu-me-falta, tu me faz falta, sabiá, na terceira pena da minha asa esquerda há um machucado que não cicatriza do buraco que tu me dóis ali, bem do lado do meu coraçãozinho-sabiá, singelo coração sem alpiste,
o canto fica descaído pra dentro enozado de sustenidos e bemóis, ganchos tristonhos que não se purripurram porque não me ouves, sabiá.

Um bem-te-vi aqui do bosque ao lado me diz que bem me viu, que bem me ouviu mas nada pode fazer pelo meu mal de ausência, que a minha dor de desexistir tua sabiá é dor alheia, pode um pobre bem-te-vi suprir o oco de um doce sabiá? Purripurruo calada, minha garganta de novo só engole o sal e o aperto, mais uma vez ave maria, sina de sabiá-fêmea, a quem só resta rezar. ( Graça Craidy)

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Eu nasci há quatro mil anos atrás.

A genética me fascina. É tipo uma arte aleatória, espécie de criação randomizada, um caleidoscópio maluco que nunca pára de se reinventar. Me representa até que um geniozinho através dos tempos fica se divertindo em misturar bocas, olhos e narizes e cabelos e dedos e mãos e pés.

- Humm, que tal este nariz aqui com esta boca ali? Quem sabe aquele cabelo lá com aquele olho acolá? Tsk! Prefiro este queixo aqui com aquela sobrancelha. E não se fala mais nisso!

Eu, por exemplo, tenho um dedo mindinho no pé que certamente não pertence por direito ao resto do meu pé. Um dedinho com-ple-ta-men-te bastardo. Meu pé é forte, largo, dedos longos, ossudos, poderia muito bem ser pé de uma daquelas estátuas gregas das Cariatides de Atenas, inclusive, que pra sustentar o templo em sua cabeça havia que ter bom suporte.

Bom suporte, tirando o meu mindinho, claro. Com seu ridículo formato de dedo-bolinha, alma de pão de açucar, altinho e pra fora, ele não sustentaria nem uma casa de joao de barro, o inútil!

Duas únicas coisas, porém, me consolam. Primeiro, é que não é só num pé. Pelo menos ambos os dedos mindinhos dos meus pés são igualmente ridículos, bolinhas e saltados pra cima, como se tivessem sido mal colados. Aliás, digo e re-digo: o sujeito que me montou antes de eu nascer pegou um dedo mingo da gaveta errada. Tava distraído, o inconsequente!

O pé de Constantino. Cariatides.

A segunda coisa que me consola é que, procurando por uma imagem de pé de estátua no google, dei de cara com o pé do Constantino, depois nomeado César, que foi imperador do Império Romano Unificado até 337 DC. Quase caí pra trás! Não é que o mindinho do augustíssimo césar era tal e qual o meu? Cáspita! Há mais de 1.600 anos o mindinho-bolinha comandava o mundo! Me senti um pouco melhor, agora.

No entanto, minha herança genética mais forte é, sem dúvida nenhuma, meu nariz. Filha por um lado de pai com herança libanesa e de mãe com herança italiana e francesa, que outro nariz eu poderia me atrever a desejar que não um grande e poderoso nariz? Quem me olha de perfil enxerga um super nariz árabe-franco-italiano, com ossinho entre as sobrancelhas e tudo.

- Elementar, dear Watson!
- Nem tanto, Hol, nem tanto!
- E as infidelidades?... Aqueles que acreditam piamente em árvore genealógica esquecem que as pessoas traem? - resmungaria Jorge Luis Borges.

Outro fator desmoralizante da genética- me lembrou muito bem meu amigo Ivan Caires - é que desde todas as guerras da antiguidade até agora na Sérvia/Montenegro, os vencedores sempre estupraram as mulheres dos inimigos ou as obrigaram a aderir à cultura e à cama dominantes.

De modos que não sei se alguém andou pulando a cerca ou se houve um momento de violência contra alguma pobre mulher na minha linha genealógica bem mais lá pra trás, para que eu ou você ou qualquer outro no mundo tenhamos nos construído geneticamente da maneira que somos.

Mas é fascinante tentar descobrir a origem nos retalhos do patchwork que nos costurou, em fotos antigas, nos parentes, nos pais, nos avós e, quem sabe até, no vizinho, no melhor amigo do seu pai, no marido da melhor amiga da sua mãe?

É um festival de olho, boca, queixo, bochecha, covinha, sobrancelha, cabelo, orelha, que daria pano pra mangas per omnia saecula saeculorum. Na minha família, por exemplo, há o mito do queixo da nossa vó italiana. Cada bebê que nasce, sempre tem um que alerta: - espia, é o queixinho da vó Cristina!

Outro dia, ainda, ouvi uma adolescente bonita que é uma princesa reclamando de 0,01% do seu corpo. Que do pai só havia herdado, infelizmente, as orelhas. Orelhas de abano, ela se lamuriava. Com tanta coisa pra herdar, por que justamente as orelhas de abano?

Mistério!

Há um grande mistério, aliás, na minha genética, que não sei como explicar e que compartilho com você. Em meados dos anos 80, quando eu trabalhava como redatora publicitária na agência J. Walter Thompson, em São Paulo, havia lá um revisor muito culto de nome Gilson, se não me engano, que toda vez que me encontrava dizia:- Hitita! Você tem o perfil hitita!

Eu não sabia nada de hititas tampouco de perfis hititas e, como naquele tempo não havia google, sorria pra ele - devia ser alguma coisa bacana, eu pensava - e deixava pra lá permanecendo na minha mais escura ignorância.

Há poucos anos, porém, depois que voltei a morar em Porto Alegre, um dia me veio o Gilson à mente e sua frase brincalhona: - oi, Hitita! Lancei a palavra-chave ali mesmo, no branco generoso do google, e se ofereceu um desparrame de hititagens sem fim.

A wikipedia me esclareceu que os hititas eram um povo indo-europeu que, no II milenio a.C., fundou um poderoso império na Anatólia central (atual Turquia), cuja queda data dos séculos XIII-XII a.C..

Revelou também que em sua extensão máxima, o Império Hitita compreendia a Anatólia, o norte e o oeste da Mesopotâmia até a Palestina. Que a sua capital era Hattusha. E que o seu império formou, junto com o Egito e a Babilônia, o trio das grandes potências dos séculos XIII e XIV a.C.

Pesquisando mais, dei de cara com um site espanhol que me mostrou várias figuras do alfabeto hitita. Entre elas, uma me chamou especialmente a atenção e me deixa até hoje de queixo caído. É a figura que significa " reina". Isto é, rainha.

Você não precisa nem me acreditar. Eu mostro. Espie ali na imagem do alfabeto e reconheça. A figura da reina, da gran dama hitita, passados mais de 4 mil anos, não é ninguém mais nem ninguém menos que ....eu.(Graça Craidy)

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A branquela desbotada.

- E tudo o que você disser será usado contra você, pleiba! Melhor calar essa boquinha cheia de dentes….- encerrou o policial mal-encarado me empurrando pra dentro da cela, prevalecido do seu poderzinho de merda.

Encaixou a tranca, passou a chave na porta de grades e se foi, rebolando aquela bunda gorda apertada no brim cáqui, parceria repugnante para sua rotunda barriga de cerveja e torresmo adquirida certamente em pútridas padarias de subúrbio.

Tremendo de frio e de medo, dei de cara com dez pares de olhos fixados em mim. Todos castanho-escuros, brilhando na luz tênue daquele cubículo 3X4. Todos enfiados em órbitas de peles escuras, pardas, mulatas, retintas. Um por um me medindo de cima a baixo, misto de desprezo, curiosidade e regozijo.

A riquinha tava fodida, devem ter pensado. Até que enfim uma danoninha pega com a boca na botija, só pra variar um pouco nesse mundo injusto de bosta.

Aqueles mulheres curtidas pela solidão coletiva da prisão tinham agora em mim um novo divertimento para o tédio desesperado das suas mortes em vida.

- Pisou na bola, é, branquela?
- Um amigo pediu pra guardar a bolsa dele no meu carro: 20 papelotes…Eu nem sonhava...
- Amigão!...
- Ih, ferrou!...Vais morgar por aqui um bom tempo, ô, desbotada…
- E já que a madame vai se estabelecer no recinto, vamos deixar bem desclarecido umas coisa: aqui tu não é merda nenhuma, tá claro?
- Como é teu nome?
- Graça.
- Desgraça, tu quer dizer, né? Hahahaha!...Pois de agora em diante teu nome é Branquela. Branquela Desbotada, valeu?

Pra começar, elas me delegaram como cama o canto ao lado do banheiro. Banheiro... Um buraco fétido no chão de cimento, encimado por uma velha ducha corona pinga-pinga que me atormentava dia e noite na repetição da sua contagem acusatória: otária, otária, otária.

Naqueles 12 metros quadrados entre mim e elas cabiam três oceanos. Os dias eram longos, as noites, mais ainda.

Não poder sair daquele cochicholo apertado me diminuía a existência em séculos. Tudo tinha perdido a cor. No cinza do concreto sujo o tom dominante enferrujava minha alma, me embrutecendo as veias, alerdando o gesto, me transformando em uma ratazana bípede.

Depois do primeiro dia em que se assenhorearam do meu drama, minhas companheiras de cela resolveram em surdo uníssono não me conceder palavra. Desprezo total. Só os olhares diziam mais que qualquer livro de sociologia.


Nem sei se eu queria, também, me aproximar. Talvez, não. Tudo fedia. Eu fedia, a comida fedia, o colchão, o pensamento fedia, existir fedia. Naquele covil de fêmeas, o cheiro acre de menstruação velha se mesclava à aca pestilenta de sovacos cabeludos e roupas úmidas de secar na sombra.

O que mais se entranhava no meu nariz, no entanto, era o agudo olor do poderoso líquido de desenroscar crespos de cabelos pichaim. No ócio forçado da prisão, todas elas, negras, ou meio-negras, buscavam se libertar vaidosas de seus gens alisando fio por fio suas carapinhas.

Encolhida no meu canto de dejetos comuns, eu emagrecia dia após dia, muda e defensiva, oca de pensamentos outros que não o ódio gelado por meu pretenso amigo que tinha me metido naquilo e que hoje certamente flanava lá fora, impune e sem remorso.

Quantos anos vou ficar aqui? Que dia é hoje? Quem sou eu? Por que a gente nasce? Por que não acabam comigo de uma vez? Eu sou um deserto. A vida é nada. É tudo. Tudo é estar lá fora. E esta porta que não abre? E esta porta, que só abre pra dentro do inferno?

Aqui jaz uma boceta inútil. Uma branquela desbotada no meio de negrelas coloridas. Elas resistem porque, cá ou lá, mesma miséria. Cá, pelo menos, teto e comida garantidos. Eu, pobre de mim. Rata branca sem melanina e sem razão. Crime e castigo, dostoiévski barato. Nenhum romantismo na cadeia. Paixão é literatura.

No vazio do calendário, você fica pior que os piores, você desexiste. Existe maldição maior do que ser varrida do universo? Morrer deve ser melhor.

Junto minhas forças num canto sujo da unha e decido, último desalento humano: hoje à noite vou desembranquelar e abrir esta porta de um jeito ou de outro. Ou abro pro céu. Ou pro inferno. Quiçá pro maldito purgatório. (Graça Craidy)

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Artigo: Os barbudinhos da criação.

Afinal, quem era essa gente barbuda que ao longo dos anos 60 havia se transferido para as agências de publicidade de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre, vinda das redações do Correio da Manhã/ RJ, da Folha de São Paulo, do Correio do Povo/RS, do centro acadêmico da Filosofia da USP, e até, no caso do redator paraense Pedro Galvão, de 59 dias preso nos porões da ditadura?

Os criadores publicitários de esquerda, entre a ditadura e o capitalismo.
Aquela turba jovem que adentrava o futuro glamour do mundo da publicidade dominado pela JWThompson, meio por acaso e sem saber direito em que consistia o métier, vinha para ganhar o dobro ou mais do que percebia em suas funções jornalísticas, a propósito, funções também sem relação direta com nenhum dos cursos frequentados pelos neo publicitários: Sociologia, Direito, Filosofia, História.

A estranheza, no entanto, não ficava por aí. Os criadores ditos " de esquerda", que assumiram as lides na criação publicitária brasileira, mais tarde seriam não só premiados criadores, como se destacariam no ambiente profissional encarnando o papel de líderes eleitos por seus pares para comandar a instituição mais representativa e crítica da identidade dos criadores publicitários, o Clube de Criação.

E mais: os próprios criadores acreditam que suas gestões fizeram a diferença justamente porque tiveram iniciativas "de esquerda", como, por ex., apoiar a nacionalização dos cartazes de cinema, criar e anunciar publicamente eleições diretas para a escolha dos júris que selecionavam as melhores peças do ano, integrar o movimento pelas Diretas Já, publicar anúncios contra a censura e a ditadura e a favor da anistia etc.

Em São Paulo, foram presidentes do Clube de Criaçao os redatores Ercílio Tranjan, Sérgio Graciotti, Carlos Chiesa e Raul Cruz Lima. No Rio de Janeiro, os redatores José Monserrat Fº, por duas gestões, e Pedro Galvão. No Rio Grande do Sul, uma líder mulher e não-redatora: a diretora de arte Nara Fogaça Nunes.

Ser de esquerda parece que se constituía em plus favorável às necessidades do perfil humanista-culto-multidisciplinar das agências de propaganda de então. Daí, talvez, não importar, no começo, a sua ignorância do ofício.

Ercílio Tranjan, na época estudante de Ciências Sociais na USP e aluno de Francisco Weffort, acredita que o desconhecimento do métier pelos novatos da profissão tenha sido uma característica bem típica da sua geração de criadores publicitários. Ele próprio conta que "foi parar" na agência JMM, alçado à promissora carreira da modernidade, na ignorância do seu destino:

Eu precisava ganhar a vida, estudava à noite. Durante o dia, trabalhava no grêmio (…) trabalhava comigo o Chico Socorro (…) que ficou fascinado com a minha forma de escrever e me perguntou: você não quer trabalhar em propaganda? Eu não sabia muito bem o que vinha a ser isso. Sou de uma geração em que as pessoas ainda não escolhiam a publicidade, iam parar ali. Era meio assim. Não era uma escolha de carreira. Até porque não havia as escolas de comunicação. (TRANJAN, 2005)
Sérgio Graciotti Machado, mais tarde sócio da MPM Propaganda (agência que liderou por 15 anos o ranking das maiores do Brasil) e premiado criador de comerciais para a TV, embora formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, de São Paulo - espécie de griffe acadêmica já naquela época - trabalhava, de fato, como jornalista.

Entre noticiosos do Ford Informa na Rádio Difusora de SP, copidesques da Folha de SP e free-lances para a revista Realidade, Graciotti cumpria jornadas duplas e até triplas, bastante comuns na vida dos jornalistas de então, para sobrevivência financeira. Em 64, ele conta que foi abordado pelo diretor da Quatro Rodas, José Carlos Marão, com um convite para trabalhar na agência C.I.N., que entre outras contas cuidava da publicidade do automóvel DKW Vemag:

Ô, Serginho…você quer trabalhar em propaganda? E eu achava o máximo, porque eu lia os anúncios e aquilo me atraía muito. Falei: Quero. Então, vai falar com esse cara aqui. E me deu um endereço. Eu nem fui para a Difusora. Peguei um ônibus ali na porta, desci na rua não me lembro qual é o nome, ali na Higienópolis e era uma agência chamada C.I.N., que depois virou Leo Burnett. (…) Cheguei lá e o cara falou: Já? Eu falei: Já! Então, pode sentar e trabalhar. (MACHADO, 2005.)
O criador do Leão do Imposto de Renda, Neil Ferreira, redator que consagrou-se em dupla com o diretor de arte Zaragoza, (o Z da agência DPZ), contava no currículo com dois anos de Direito na São Francisco e o curso completo da Escola de Sociologia/USP, porém, trabalhava, às veras, em jornal, e eventualmente como freelancer na revista O Cruzeiro. Foi apadrinhado para a mesma agência de propaganda C.I.N., também por um representante da indústria cultural da época, a TV Tupi:

Estava no jornalismo e um dirigente da TV Tupi, Rogério Severino, " descobriu" o meu texto e indicou-me para um amigo dele, Antônio Nogueira, então sócio de uma agência de propaganda chamada C.I.N ( …) Antônio Nogueira ofereceu-me um " contrato de risco": eu ficaria 3 meses na C.I.N., era o prazo que eu tinha para ver se me ajustava ou não. Se desse certo, eu teria uma nova carreira aberta à minha frente, se não desse certo, cada um voltaria para a sua casa. Fiquei interessado porque o salário inicial era o dobro do que eu ganhava no jornal. (FERREIRA, 2006.)
Interessante notar que nem Sérgio Graciotti, ainda que achasse propaganda "o máximo", não parou de trabalhar na Folha de SP quando foi para a C.I.N, tampouco Neil Ferreira abandonou o jornalismo.

No imaginário dos criadores de então, publicidade era algo ainda nebuloso, desconhecido - " trapézio sem rede", como traduziu Neil (2006):

Aceitei [a proposta da C.I.N.] mas não saltei no trapézio sem rede. Como o trabalho na agência era das 8 da manhã às 6 da tarde, peguei um lugar na sucursal de São Paulo do Jornal do Brasil (então, o jornal mais bem escrito do país) das 7 da noite à meia-noite, o que me garantiria se o trabalho na publicidade não desse certo. Deu. Menos de 2 meses depois, a Standard Propaganda ( hoje Ogilvy), escrit. de São Paulo, então a melhor agência brasileira, ofereceu-me o lugar de assistente do diretor de criação, o Roberto Duailibi. (FERREIRA, 2006.)

O marxismo cor-de-rosa.
Essa turma de redatores que mudava suas máquinas de escrever para dentro das agências de propaganda, nos anos 60, trazia na bagagem o espírito libertário do vigente " ensaio geral de socialização da cultura", ao que se refere o sociólogo unicampiano Marcelo Ridenti (2001:14), citando expressão da professora de literatura da USP, Walnice Nogueira Galvão, cunhada em As falas, os silêncios (1994). Ensaio, aliás, que, transformaria mais tarde a promessa de socialização em massificação da cultura, afirma Ridenti (2008), via tropicalismo e outros desdobramentos do império da indústria cultural na sociedade brasileira.

Naquele momento histórico, entretanto, havia uma percepção em várias partes do mundo, que Ridenti (2001) nomeia " romantismo revolucionário internacional", um sentimento que abarcava diversos aspectos, desde a liberação sexual, o desejo de renovação, a fusão entre vida pública e privada, a ânsia de viver o momento, a aposta na ação em detrimento da teoria, os padrões irregulares de trabalho (como se viu, na vida dos jovens criadores), até a relativa pobreza, características típicas, segundo o autor, da juventude de esquerda da época.

Havia também " a velha tradição romântica", ele lembra, da utopia da integração do intelectual com o homem simples do povo.

No Brasil, nada muito diferente. Ensaiar a socialização da cultura era exercício protagonizado principalmente pela classe média intelectualizada - afirma Ridenti (2001) - e significava uma efervescência de crenças e esperanças que compreendia a conscientização política do campesinato e dos operários através da cultura e a rejeição ao imperialismo colonizador americano, buscando uma identidade nacional e um desenvolvimento econômico que fizesse justiça social e guindasse o país a outro estágio de progresso sócio-cultural.

Socializar a cultura queria dizer colocar idéias em prática, no lugar de discursar. O espírito de 68 já contaminava o ambiente social, animando as conversas de bar com uma chamada "vulgata marxista", que falava em materialismo histórico, dialética e mais-valia.

Acreditava-se nas reformas de base acenadas por Jango, a começar pela reforma agrária. Regozijavam-se os admiradores de Che e Fidel pela expulsão do pelegato americano da sua ilha e fundação de uma Cuba dita enfim Libre. Farejava-se uma certa decepção com o socialismo da União Soviética - burocrático demais, aponta Ridenti (2008) - aceitando-se em seu lugar o de Mao na China como uma esperança mais crível de solução para a miséria e a injustiça.

Crença nem tão geral, é bem verdade. Neil Ferreira (2006) já formulava crítica mais aguda:

Não acredito em prática sem formação teórica e a teoria marxista para mim tinha sido totalmente contrariada pelas 3 revoluções que eu estudava com muita curiosidade, a leninista, a maoista e a fidelista. Hoje fico feliz por ter percebido isso. (FERREIRA, 2006.)
O clima era de uma " espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico", recorda Roberto Schwarz, em O pai de família e outros estudos (1978:63).

Desdentada? Ele relata que antes de 64, o socialismo que se difundia no Brasil era "forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes", resultando (em vez de luta) numa conciliação de classes e, como se não bastasse a banguela desse " dente" denunciado por Schwarz (id.), ainda se somava ao que o autor chama de "populismo nacionalista". Ele entende que a razão dessa mistura mambembe deveu-se em parte à estratégia equivocada do Partido Comunista, que pregava aliança com a burguesia nacional.

Onde já se viu comunista fazer aliança com burguês? No Brasil, se viu. Segundo Schwarz (id.), a burguesia valeu-se do apoio do PC para usufruir de dupla vantagem em seu favor: uma, " intimidar a direita latifundiária" com a ameaça de reforma agrária; duas, infundir bons sentimentos nos trabalhadores, via um nacionalismo "autenticado pela esquerda". Schwarz (id.) lembra que o imaginário anti-imperialista de então era personificado no dia-a-dia de um personagem de nome Brasilino , que demonstrava por a+b a invasão estrangeira:
Se acendia a luz pela manhã, a força era da Light & Power. Indo ao trabalho, consumia gasolina da Esso, num ônibus da General Motors. As salsichas do almoço vinham da Swift& Armour, etc. (SCHWARZ, 1978:64)


O surpreendente, neste período - recorda Schwarz (id.) - é que o cotidiano brasileiro acabou por se apropriar de um " vocabulário e raciocínio de esquerda". Até o presidente Goulart, que era do PTB, se apoiava no PC.

Mas, no plano ideológico, Schwarz (1978:64-65) constata, o resultado não passou de imensa salada " rósea", com uma noção de "povo" apologética e sentimentalizável, que não diferenciava as massas trabalhadoras do lumpenzinato nem da intelligentzia, nem dos magnatas nacionais e nem do exército, cujo melhor símbolo - ele exemplifica - eram as cenas de festas do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, verdadeira " geléia geral", para usar a expressão do compositor piauiense Torquato Neto:
em Terra em Transe, fraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países socialistas, os militares progressistas, católicos e padres de esquerda, intelectuais do Partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de rigor, outros em blue jeans. Noutras palavras, posta de lado a luta de classes e a expropriação do capital, restava do marxismo uma tintura rósea (SCHWARZ,1978:65)
No entanto - Schwarz (id) ressalta - o que esse anti-imperialismo e pretensa aliança com a burguesia mais fez foi subestimar a força de outra oposição que se alojava não alhures, mas no âmago da sociedade brasileira. Era um "setor agrário, retrógrado e pró-americano", diz Schwarz (1978:65), o tal que em 64 viabilizaria e legitimaria o golpe militar, formando um bloco patronal com a idêntica burguesia antes parceira do PC, mancomunados ambos na alegada autoproteção contra um inimigo comum: o temido comunismo desbaratador da propriedade privada.

Heloisa Buarque de Holanda e Marcos Augusto Gonçalves (1987:20) constataram o florescimento, entre 45 e 64, de uma geração " extremamente sensibilizada pelas questões do desenvolvimento e da emancipação nacional".

Essa mesma geração, da qual fazem parte muitos dos criadores publicitários objetos desse estudo, foi atropelada pelo golpe de 64 que interrompeu a " deriva progressista" e criou uma situação "paradoxal" - dizem os autores: o campo intelectual acabou assumindo para si uma espécie de papel de " foco de resistência" ao movimento militar, a partir da força interna do " marxismo róseo" construído antes do golpe:

o país, encaminhado pelos trilhos modernos e selvagens da industrialização dependente, encontra suas elites cultas fortemente marcadas por uma disposição que, em sentido amplo, poderíamos dizer " de esquerda". (HOLANDA, GONÇALVES, 1987:20-21)

Mesmo depois do golpe, relata Schwarz (1978), a presença cultural da esquerda se manteve intocada e em crescimento (pelo menos até o AI-5, ele ressalva). Uma constatação tão surpreendente, que o autor grifa no seu texto:
Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. (SCHWARZ, 1978:62).
Ortiz ( 2004) explica porque a cultura foi poupada:

o Estado autoritário, no início, se voltou para a repressão dos sindicatos e das forças políticas que lhe eram adversas, só depois é que o AI-5 estendeu suas presas sobre a esfera cultural. ( ORTIZ, 2004:102)
No ano de 1964, já trabalhando na agência Standard, em São Paulo, o redator Neil Ferreira (2006), garante nunca ter sido comunista, pois achava o comunismo "um besteirol oitocentista em plenos anos sessenta." Ele não perdoa:

Até a linguagem era idiota, 'perder o bonde da História', veja só. Os caras já estavam aprontando o Sputinik e a turma falando em 'bonde" da História'.
Comunista ou não, o fato é que Neil foi testemunha voluntária e entusiasta, in loco, da euforia de esquerda de então, apontada por Schwarz (1978), talvez integrante do que mais tarde passou-se a designar como " esquerda festiva":

De 64 até o AI 5, vida de estudante era politicar e fazer passeata, tinha umas 3 ou 4 por dia para deixar uzômi sem saber para qual lado mandar a reprê. Eu era dos poucos que não vivia de mesada, então não era sempre que podia ir. Mas ia a todas que eram mais ou menos na hora do almoço, ou às 4 e meia, 5 da tarde. (…)
(FERREIRA, 2006).
Neil (2006) relata ainda que utilizava o mimeógrafo da Standard para rodar o "Jornal das Passeatas", panfleto de sua autoria, tingido com tintas "triunfantes" de um imaginário romântico onde o mocinho vencia o bandido, no final:

Eu fazia uma coisa engraçada. Escrevia e copiava no mimeógrafo da Standard, clandestinamente, o Jornal das Passeatas, com descrições triunfantes daquelas a que eu "frequentava". Parecia que tinhamos parado a cidade e derrubado o governo. Vestiba de propaganda enganosa. (FERREIRA, 2006)
Como se vê, nos anos 60 podia-se ser ao mesmo tempo da burguesia e de esquerda. Schwarz (1978) resume a sua estranheza em relação a isso, denominando o quinquênio 64-69 de " anomalia" :

Em suma, nos santuários da cultura burguesa, a esquerda dá o tom. Essa anomalia (…) é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro, entre 64 e 69. (SCHWARZ, 1978:62)".
A lógica alógica do imaginário.
Se foi anomalia, acometeu também o imaginário dos recém-recrutados criadores publicitários: uma disposição " de esquerda", um espírito de "socializar a cultura" somado a outro espírito oposto de "capitalizar-se", afora a atração pelo mundo sem fim de novos produtos por anunciar na " moderna tradição brasileira". No livro de mesmo nome, Ortiz (2006) revela a sociedade unida pelo duplo laço histórico-político-econômico de uma rede de integração nacional via Embratel:

enquanto os militares propõem a unificação política das consciências, os empresários sublinham o lado da integração dos mercados. ( ORTIZ, 2006:118)

Cada qual com suas motivações e, no meio, os criadores, convidados a realizar essa costura ideológico-mercadológica, ressignificando, por exemplo, o vocábulo "popular", como aponta Ortiz ( 2006):

aos poucos a palavra perdeu o seu tom político (antes atrelado aos CPCs - Centros de Cultura Popular, que conscientizavam as massas através da arte ) e passou a significar " o mais consumido.
Ou seja, a lógica mercadológica, como alerta Ortiz (2006:164) passa a despolitizar as discussões, já que " aceita o consumo como categoria última para se medir a relevância dos produtos culturais ( discos, peças de teatro, novelas)". E, assim, do clima de liberdade cultural politizada, o antigo espírito nacionalista passa a ser traduzido no imaginário da busca de uma identidade nacional não como um grande país chamado Brasil, mas como um grande mercado chamado Brasil:

a idéia de " nação integrada" passa a representar a interligação dos consumidores potenciais espalhados pelo território nacional. (…) Nesse sentido, o nacional se identifica ao mercado; à correspondência que se fazia anteriormente cultura nacional-popular, substitui-se uma outra, cultura mercado-consumo.
(ORTIZ, 2006:165)
Que ressonância tem essa mudança no imaginário dos criadores publicitários? Para compreender esse modo de pensar paradoxal dos novos criadores publicitários, é preciso apelar para a noção de "imaginário" que contesta o método da verdade vindo do socratismo, de lógica binária, dialética, cujo só admite dois valores: um falso e um verdadeiro (DURAND, 2004:9), eliminando racionalmente o paradoxo como verdade aceitável.

Essa dialética, ensina Durand (2004:10), herdada de Sócrates, Platão e Aristóteles, se vale basicamente do " princípio da exclusão de um terceiro", sem negociação, nos moldes de " ou…ou", isto é, da crença de que um raciocínio ou é absolutamente verdadeiro ou é absolutamente falso.

Guardadas as proporções, seria dizer que "ou os criadores publicitários em questão são de esquerda porque abominam o capitalismo explorador da massa trabalhadora", ou, por outro lado, " não são de esquerda, porque aderem ao capitalismo explorador da massa trabalhadora".

Ora, diz Durand (2004:10), dentro das profundezas do imaginário cabem não só duas formulações, como infinitas e inesgotáveis. Nesse caso, em vez do " ou" alternativo eliminador, mais vale a adição multiplicada de " e, e, e, e, etc":

A imagem pode se desenrolar dentro de uma descrição infinita e uma contemplação inesgotável. Incapaz de permanecer bloqueada no enunciado claro de um silogismo, ela propõe uma " realidade velada" enquanto a lógica aristotélica exige " claridade e diferença". (DURAND, 2004:10)
Durand (2004:35) aponta pesquisas sobre o funcionamento concreto do pensamento que demonstraram o psiquismo humano funcionar tanto em um encadeamento racional de idéias como também " na penumbra ou na noite de um inconsciente".

Graças a Freud - afirma Durand (2004:36) - descobriu-se que o inconsciente usa as imagens como uma espécie de intermediário entre o inconsciente não manifesto e uma tomada de consciência ativa, permitindo que a imagem passe de " a louca da casa" para a chave do psiquismo, da pulsão da libido.

Durand (2004:75) dá créditos também, entre outros, à contribuição de Eliade e Corbin para uma teoria do imaginário, na descoberta de que o imaginário transita em um tempo " não-newtoniano" e com uma extensão figurativa " diferente do espaço das localizações geométricas".

Mas, é a Bachelard que Durand (2004:79) computa o conceito de " pluralismo coerente", uma reviravolta epistemológica - ele conclui - porque no pluralismo, totalmente diferente das coordenadas espaço-tempo universal e homogêneo de Euclides e Newton, há o illud tempus do mito, que " contém seu próprio tempo numa espécie de relatividade", onde o passado e o futuro independem entre si e os eventos são passíveis de reversão, de releitura.

Sintetizando, Durand (2004:80) cita Corbin: o imaginário é um "não onde".

Sendo assim, constata Durand (2004:81), ao se estudar o mundo imaginário, "os maus hábitos herdados do ' terceiro excluído' vão se atenuando" e - a chamada por ele - " alógica do imaginário" entende e dá boas-vindas ao sonho, ao onírico, ao mito e à narrativa da imaginação.

Não bastasse evidenciar a morte da lógica no imaginário, Durand (2004:83) cita Freud, para a desforra da histórica desmoralização do imaginário feita pela ciência, relatando que em qualquer projeção imaginária, além de não haver lógica, há uma espécie mansa de " conivência dos contrários", cumplicidade onde um elemento existe pelo outro:

quando evocamos o Diabo em nome do bom Deus é porque precisamos dele! Como Freud já observara, o herói depende do monstro ou do dragão para transformar-se num herói (DURAND, 2004: 83)
" Todo pluralismo é coerente", afirma Durand (2004:84) citando Bachelard. E, além de coerente, constrói um sistema de relações entre vários elementos, estabelecendo uma nova lógica, alógica, de contrários ou contraditórios, rompendo assim com a lógica bivalente onde "A não exclui não-A" e permite, além disso, um conjunto de " qualidades intermediárias".

Durand (2004:85) cita, também, o jovem sociólogo do imaginário S. Joubert, a quem ele atribui a autoria de " eloquente ensaio de sociologia quântica", e que teria, inclusive, extrapolado com irreverência o antigo conceito de Razão, ao resumir suas "conivências" como" A crítica da Razão impura".

A razão impura dos criadores publicitários.
Entre os criadores em questão, houve os de mais coerência e os de menos coerência, todos porém plurais e, certamente, coniventes. Ercílio Tranjan, considerado por seus pares um dos dez redatores mais criativos da publicidade brasileira, relata o seu encantamento com o ofício:

Eu olhava anúncios e me emocionava. Eu tenho um anúncio que carrego comigo e não é meu mas me marcou muito. Era da Johann Faber, um lápis mordido na pontinha, o layout tradicional e o título "Lembra como eram gostosos os lápis Johann Faber? Tinha esse grau de inteligência e já era uma geração totalmente influenciada pela DDB. Carregava emoção, inteligência, o herói era o produto. E foi nessa águas que a gente bebeu e aprendeu propaganda. (TRANJAN, 2007)

Redator sensível, por outro lado Ercílio era conhecido, também, como o "barbudo comunista mal-humorado, segundo o escritor Fernando Morais, em seu Na Toca dos Leões (2005):

Barba preta e humor de comunista, (condição, aliás, de que era acusado), Ercílio Tranjan era o exemplo acabado da chamada "geração dos subversivos", publicitários de sucesso que eram assolados por problemas de consciência por estarem ajudando a consolidar um sistema que, ao fim e ao cabo, sustentava a ditadura militar. (MORAIS, 2005:64)
Ercílio (2007) argumenta, em defesa da sua geração, que os criadores levavam muito a sério " a coisa dos valores éticos". Ele recorda: "nós todos, no meio de toda aquela repressão, ditadura terrível, tínhamos uma consciência política muito grande. Nos preocupávamos.(…)". E arremata:

Ninguém tinha vergonha de trabalhar em propaganda, o que a gente queria era não servir à ditadura. Várias vezes nos recusamos de fazer anúncios, são episódios e episódios… (TRANJAN. 2005)
Carlos Chiesa, redator, ex-presidente do Clube de Criação de São Paulo, lembra o que era viver com o sentimento de traidor da pátria:

O pessoal que se dizia de esquerda se sentia muito mal por ganhar um dinheirão trabalhando para os capitalistas. (…) Havia alguns que ficavam o dia inteiro se questionando e reclamando do trabalho. (…) ( CHIESA, in GANDRA,1995:26)
Ao que o jornalista, José Ruy Gandra ( 1995) complementa, lembrando das chamadas patrulhas ideológicas, " críticas formuladas por grupos ortodoxos de esquerda" - ele explica - que agravavam ainda mais o quadro pintado por Chiesa. Gandra (1995) reconhece que hoje em dia o sentimento de culpa daqueles criadores soa estranho, mas releva o momento histórico:

Naquela época, não. De fato, havia um desconforto mais ou menos generalizado. Entre pessoas intelectualizadas era comum um cultivo voluntário da angústia existencial, da amargura diante da vida e da impotência diante dos fatos. Fazia parte. ( GANDRA, 1995:26)

A diretora de arte Nara Fogaça Nunes ( 2008), ex-presidente do extinto Clube de Criação do Rio Grande do Sul, foi demitida da Escala ( segunda agência da MPM, no RS) , no final dos anos 70, porque pediu para não criar a campanha do candidato da Arena a Governador, José Augusto Amaral de Souza:

O Paim e o Pinedo eram os diretores. Pinedo, ex PC do B. Da diretoria, na clandestinidade, direto. Dirigente no RGS. ( pouca gente sabe disso) Quando entrou a conta do Amaralzinho (esqueci se era pra prefeito ou governador), pedi uma reunião com o Pinedo e, educadamente perguntei se eu poderia escolher não trabalhar pra o baxinho (…) Detalhe importante - eu também era do PCdo B e o Pinedo sabia. O Pinedo, sem-vergonha, foi ultra gentil e democrático. Concordou, disse que eu tinha esse direito e...me botou pra rua uns dias depois. (NUNES, 2008)
No Rio de Janeiro, o redator Liber Mateucci, filho de um jornalista do PC perseguido pela ditadura, foi mandado embora da MPM, em 1978, porque se recusou a participar da campanha de João Figueiredo à Presidência:

… pedi com antecedência que não me passassem o trabalho, por motivos óbvios. Mas, quando houve a primeira reunião de briefing, convocaram-me.(…) Laerte Agnelli, (…) perguntou-me onde eu estava na hora da reunião, (…) expliquei que o Figueiredo não precisava de campanha, porque não iria a votos, já tinha sido ungido no poder pela ditadura. Como resultado, fui chamado à diretoria executiva, que me questionou uma segunda vez. Reafirmei o que já tinha dito e fui despedido sumariamente. (MATEUCCI, 2008)
A agência multinacional Lintas, em São Paulo, naqueles idos, era vista como
" ninho de comunistas", pois em seu departamento de criação quase todos, segundo Morais (2005:139), eram " gente de esquerda". Entre eles o redator, poeta e ex-jornalista Otoniel Santos Pereira, que foi preso dentro da próprio andar da criação, por cinco homens à paisana empunhando pistolas, metralhadoras e carabinas, e só retornou à agência 12 dias depois. A acusação: havia hospedado em sua casa um dirigente do PC do B:

Encapuzado ainda na porta da agência, Otoniel foi levado ao DOI-Codi, onde passou doze dias sofrendo torturas físicas e intimidações ( os militares ameaçavam prender e torturar seu filho Tiago, que nascera duas semanas antes). ( MORAIS, 2005: 141)

Raul Cruz Lima, redator e mais tarde sócio da Denison Bates, foi presidente do Clube de Criação de São Paulo (1980), considerado um dos criadores mais politizados por seus pares. Ele garante que na sua gestão, foi eleito por suas posições políticas:

Vamos entender aquele momento. O Brasil vivia uma ditadura. E os brasileiros lutavam por liberdade. Os trabalhadores com seus sindicatos. Os advogados com a OAB. Nós com o Clube de Criação. Não que todos os criadores pensassem assim. Mas eu pensava. E aqueles que me elegeram, também. ( …) O Clube de Criação tinha uma função política. Era a entidade do meio mais atuante e vivia ao lado das outras que participavam de todos os movimentos a favor da democracia. (LIMA, in GANDRA, 1995:123)
José Monserrat Fº, redator publicitário e jornalista (Correio do Povo, Pasquim, Tribuna da Imprensa), Mestre em Direito Internacional, foi duas vezes presidente do Clube de Criação do Rio de Janeiro e posicionou-se sempre como de esquerda. Consciente das limitações da profissão, pela qual disse nunca ter sido apaixonado, ele aprendeu a criar anúncios muito rapidamente, segundo Faveco Correia - seu primeiro chefe na Denison Propaganda de Porto Alegre, onde Monserrat foi parar, depois de recusado pela Caldas Júnior, em 1967 :

Eu era jovem e tenho um temperamento um pouco obsessivo. Quando pego uma coisa, me dedico tanto que as coisas acabam saindo. O que aconteceu foi que rapidamente me tornei um bom redator no sul. O Faveco dizia “Mas você entrou ontem e já está fazendo coisas desse nível? O que aconteceu com você? Você não era comunista?”. Ele morria de rir. (MONSERRAT Fº, 2004.)
Quando voltou da URSS em 1967, onde havia passado seis anos estudando direito espacial internacional, Monserrat (2004) relata que tentou reaver seu antigo emprego no Correio do Povo, ao que o dono do jornal, Breno Caldas teria respondido: " desculpe, mas a cota de comunistas está esgotada". O espanto de um gaúcho estudar semelhante assunto, e ainda por cima, em russo, traduziu-se em depoimento do jornalista Janer Cristaldo, no seu blog:

Monserrat voltava da universidade Patrice Lumumba, estava ali a meu lado nas madrugadas do Café do Matheus, falava de um universo lá do outro lado do planeta. Adolescente, me era difícil conceber que aquele gaúcho, falando um português como o meu, falava também russo e vivera durante anos numa sociedade socialista. Sentia-me diante de um ser de ficção. (CRISTALDO, cristaldo.blogspot.com, 2004)


Inconclusões.
Com as permissões epistemológicas sobre o imaginário somadas à análise de estudiosos do contexto histórico-social-cultural-econômico dos anos 60 e a lances da trajetória dos criadores de esquerda, pode-se entender, por exemplo, como eles puderam ser ao mesmo tempo, publicitários de direita e politizados de esquerda, criativos para o Governo e críticos do Governo.

Há muitas conivências e contradições que se conviveram no mundo dos criadores publicitários de esquerda do Brasil, naquele momento histórico. Marxistas na teoria e capitalistas na prática. Marxistas róseos, diga-se de passagem.

Apoiaram os movimentos pela anistia e diretas-já e, ao mesmo tempo, conquistaram salários melhores com peças publicitárias criadas para vender televisores onde os militares veiculavam campanhas de "Este é um país que vai pra frente".

Horrorizam-se com a tortura nos porões da DOPS e criaram um anúncio de televisor com um chicote de piada ao lado do aparelho, dizendo " Submetemos nossos televisores às piores torturas".

Abominaram os milhares de presos e exilados políticos e receberam prêmios e adesão popular por jingles que despolitizavam a liberdade, como o da "liberdade é uma calça velha, azul e desbotada" para US Top.

Lançaram uma equipe dita " revolucionária" de criadores em uma agência, sob o epíteto " Os Subversivos", apropriando-se de todo o repertório de subversão para transformá-lo em mero consumo.

Sérgio Graciotti, premiado redator de campanhas para a Fiat, entre outras, e sócio minoritário na MPM, nunca se recusou a fazer campanhas para o Governo, até porque era um dos donos da agência que mais se beneficiou com as verbas da ditadura. E faz o seu mea culpa:

A propaganda, infelizmente, foi o braço direito desse capitalismo selvagem e dessa ditadura, porque a propaganda se beneficiou diretamente de tudo isso. Nunca tantas verbas foram distribuídas e tantas coisas foram privilegiadas e tantos olhos foram tapados e tantos ouvidos ficaram moucos para que a propaganda pudesse despejar isso no mercado. (MACHADO, 2005.)
Não à toa, Luís Macedo (2004), o M da MPM, sócio majoritário de Graciotti - praticamente um patrão - fala do seu partner e VP de Criação, elogiando não a sua originalidade, tampouco a sua ousadia - qualidades mais que desejáveis em um criador. A julgar pelo pouco caso com que se refere a " preocupação com os grandes lances de criatividade", Macedo, com seu imaginário clientelista chapa branca , parece que dava valor para outras virtudes do parceiro:

Eu considero o Sérgio um dos melhores profissionais de criação que eu já vi, talvez o melhor. (…) O mais completo e com uma dosagem daquilo que eu falei que eu acho fundamental, que é o bom senso e o equilíbrio. Sem a preocupação dos grandes lances de criatividade, mas extremamente objetivo em cima do briefing do cliente, do que o cliente precisa. Eu acho que o Sérgio Graciotti é o melhor profissional de propaganda com quem eu trabalhei. (MACEDO, 2005.)

E, para (in)concluir, tipicamente contraditório como sóe ser o imaginário, seja de direita, seja de esquerda, Graciotti encerra o seu depoimento e também, esta reflexão sobre os tempos de ouro da propaganda (e de chumbo para parte da população), revelando uma terceira alternativa que habita hoje o " não-onde" desvendado por Durand (2004):

Talvez tenha sido o momento mesmo. Porque era preciso. Porque, no fim, está tudo certo. (MACHADO, 2005.)


Referências bibliográficas:
CRISTALDO, Janer - Blogspot.
Disponível em http://cristaldo.blogspot.com/2004_11_01_cristaldo_archive.html)
DURAND, Gilbert - O imaginário. Ensaio acerca das ciências e das filosofias da imagem. Rio de Janeiro: Diffel, 2004.
FERREIRA, Neil - Depoimento por email à autora. Porto Alegre: 2006.
GANDRA, José Ruy. História da propaganda criativa no Brasil. São Paulo: CCSP, 1995.
HOLANDA, Heloisa B. de, GONÇALVES, Marco A. - Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MACEDO, Luiz Vicente Goulart. Luiz Macedo (depoimento, 2004). Rio de Janeiro, CPDOC/ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PROPAGANDA (ABP), 2005.
MACHADO, Sérgio Graciotti. Sérgio Graciotti (depoimento, 2004). Rio de Janeiro, CPDOC/ASSOCIAÇÃOBRASILEIRA DE PROPAGANDA (ABP), 2005.
MATEUCCI, Liber - Depoimento por email à autora. 2008.
MONSERRAT Fº, José - Entrevista a PENTEADO, Claudia, site do CCRJ, 2004. Disponível em
http://ccrj.irion.com.br/entrevistas/index.php?id=804&pagina=3&id_artigo=2&cont=sub
MORAIS, Fernando - Na toca dos leões. São Paulo: Planeta, 2005.
NUNES, Nara Fogaça - Depoimento por email à autora, 2008.
RIDENTI, Marcelo - Intelectuais e romantismo revolucionário. Revista São Paulo em Perspectiva, 15 (2) 2001.
_______________- Os anos 1960 e sua herança no Brasil. Revista Alambre. Comunicación, información, cultura. Nº 1, marzo de 2008. Disponível em
http://www.revistaalambre.com/Articulos/ArticuloMuestra.asp?Id=9
_____________- Em busca do povo brasileiro: do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000
ORTIZ, Renato - A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2006.
SCHWARZ, Roberto - O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
TRANJAN, Ercílio - Entrevista a AZEVEDO, Juvenal, site Jornalirismo, 2007.
_______________ - Entrevista a PENTEADO, CLAUDIA, site CCRJ, 2005.
NOTAS:
1. Nem todos eram barbudos, obviamente, mas na época ficou famosa a expressão "Barbudinhos da criação", cunhada pelo dono da Norton Propaganda, Geraldo Alonso, para se referir aos criadores publicitários. Além disso, em depoimento a Gandra ( 1995:62) o redator Hans Dammann recorda:" Nós éramos meio descendentes dos hippies e a barba era uma espécie de uniforme da criação".
2. Ronaldo Conde, redator carioca, trabalhou no Correio da Manhã (RJ); Sérgio Graciotti Machado, na Folha de São Paulo, no A Nação (SP) e na Rádio Difusora (SP), Marino Boeira, redator, na TV Piratini (RS), José Monserrat Fº, no Correio do Povo e Rádio Guaíba ( RS); Luís Fernando Veríssimo, na Zero Hora; Pedro Galvão, redator, estudante de Direito, passou dois meses na prisão, quando presidente da União Estadual de Estudantes do Pará.
3. JWThompson, agência norte-americana que se instalou no Brasil em 1930 e que praticamente ensinou o ofício aos locais, aqui chegada para servir ao seu cliente Esso. Em 1951 apoiou a fundação da Escola de Propaganda ( hoje ESPM), de nível técnico, no MASP, fornecendo inclusive seus próprios funcionários como professores, boa parte deles estrangeiros.
4.Disponível em http://ccrj.irion.com.br/entrevistas/index.php?id=1325&pagina=2&id_artigo=2&cont=sub
5. Brasilino era um personagem de cartilha do PTB que, segundo Schwarz (1978:64), "ao longo de um livrinho inteiro não conseguia mover um dedo sem topar no imperialismo".
6. Entrevista com Ercílio Tranjan disponível em http://jornalirismo.terra.com.br/content/view/257/26/
7. Disponível em http://cristaldo.blogspot.com/2004_11_01_cristaldo_archive.html
8. Chapa-branca, aquele que trabalha com contas de governo, expressão inspirada na cor da placa dos automóveis oficiais.
Resumo: A partir dos anos 60, a crescente expansão da indústria de bens manufaturados e simbólicos no Brasil e a aposta no capitalismo pela ditadura militar geraram uma demanda por experts em criação publicitária. O mercado da propaganda, ainda pouco profissionalizado e carente de talentos, recrutou seus novos criadores - principalmente redatores - no Jornalismo, nas Ciências Sociais, no Direito, na História e na Literatura. Esses profissionais, com sólida formação humanista, forte politização e claras posições de esquerda, embora conflituados internamente por suas crenças socialistas, trabalharam para a ditadura e para o capitalismo como criadores publicitários, primeiro em regime quase de biscate, depois com brilho reconhecido em premiações nacionais e internacionais, destacando-se, também como líderes da sua categoria: boa parte deles foi eleita presidente do Clube de Criação do seu estado. Esta investigação procura compreender o imaginário desses criadores, buscando relacionar suas escolhas e atuações profissionais feito uma terceira via de conhecimento que abarca contradições e aceita uma nova forma de racionalidade, a ordem de realidades do imaginário apregoada por Gilbert Durand (2004).

Palavras-chave: Imaginário; criação publicitária; ditadura; capitalismo.
(Graça Craidy)

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