Douglas Kellner: A identidade virou um jogo prazeroso de livre escolha do eu-mercadoria.

Por que o sr. fala em cultura "da mídia"? A mídia tomou posse da cultura?
Kellner: A cultura veiculada pela mídia em radio, TV, cinema, feita de imagens, sons e espetáculos, trama o tecido cotidiano, domina o lazer, modela opiniões politicas, modela comportamentos sociais. Aponta ainda o que é ser homem/mulher, o que é ser bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente, modela senso de classe, etnia, raça, nacionalidade, sexualidade, nós -eles. Define também o que é bom, mau, positivo, negativo, moral, imoral, visão de mundo, valores. Enfim, fornece material para construção de identidade, pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnocapitalista contemporânea, produzindo uma cultura comum. Por isso falo em cultura da mídia. É na mídia que está hoje a cultura dominante. Inclusive, para muitos jovens desta geração, a cultura da mídia é a única cultura que conhecem.

O sr. é um apaixonado pelos Estudos Culturais e, como seguidor dessa abordagem multidisciplinar, tem a preocupação de detectar as relações de poder, o discurso hegemônico e o contra-hegemônico, alertando para os focos de dominação e resistência. Qual o intuito de , como o sr. diz, buscar uma "pedagogia crítica da mídia"?
Kellner: A pedagogia crítica da mídia existe para o indivíduo se fortalecer, resistir à manipulação, à pedagogia cultural. E, assim, aumentar sua autonomia e produzir e inspirar a produção de novas formas de cultura. Ao resgatar a criatividade que ficou minada, produz a sua própria identidade e resistência. Em suma, a pedagogia crítica da mídia confere poder ao indivíduo sobre seu ambiente cultural.

O sr. , como os frankfurtianos, acredita que a mídia tem, mesmo, o poder de manipular? A mídia obriga os indivíduos a consumir, a se vestir assim assado, a agir tal como a mídia está falando?
Kellner: Não, exatamente. A mídia não obriga ninguém, mas seduz, induz o indivíduo a se identificar com as ideologias, com as posições e representações sociais e políticas dominantes. E faz isso não com um sistema de doutrinaçao ideológica rigida, mas induzindo aos prazeres da mídia e consumo. Através de seduções visuais e auditivas agradáveis, leva o individuo a se identificar com opiniões, atitudes, sentimentos e disposições, a buscar gratificação comercial. Por outro lado, o individuo pode resistir, criar seus proprios significados, usar a sua cultura como recurso para inventar significados próprios. A midia dá recursos tanto para aderir como para resistir aos modelos dominantes. Por quê? Porque a mídia é complexa, contraditória, não é onipotente, e, além disso, o individuo raramente lê a mensagem conforme o desejo do produtor. Mais uma coisa que é bom não esquecer: a mídia quer audiência e, muitas vezes, se modela, ela mesma, pelos desejos do seu telespectador. Por isso é importante fazer um estudo cultural crítico.

O que é, exatamente, estudo cultural crítico?
Kellner:
É o que conceitua a sociedade como um terreno de dominação e resistência, preocupado com o projeto democrático, examinando como a cultura da midia pode ser um entrave ou uma aliada para a democratização da sociedade, diagnosticando as inclinações e tendências sociais, os temores, esperanças e desejos que ela articula, o modo como a midia provê recursos para formaçao de identidade, como promove reacionarismo ou progresso.

Como a mídia pode ser um entrave e como pode ser uma aliada?
Kellner: Como entrave: quando reproduz discursos reacionários, promovendo racismo, preconceitos de sexo, idade, classe. Como aliada: dando voz a grupos oprimidos, atacando segregacão racial e sexual ou até enfraquecendo o preconceito, quando mostra representações de raça e sexo pelo lado positivo. É importante entender o seguinte: a necessidade de vender significa que as produções da indústria cultural devem ser eco da vivência social, num mínimo denominador comum que não ofenda as massas e atraia um máximo de compradores. A mídia pode oferecer produtos atraentes que talvez choquem, transgridam convenções e contenham critica social ou expressem idéias correntes originadas de movimentos progressistas. Assim, promove os interesses dos donos da mídia, mas também entra em conflitos com a concorrência dos outros donos da mídia. Daí, veicula posições conflitantes, promovendo às vezes resistência.

E quando uma produção é superpopular?
Kellner: Entender o porquê da popularidade de certas produções pode elucidar o meio social em que elas nascem e circulam. Nos leva à percepção de o que está acontecendo na sociedade e na cultura. Por exemplo, filmes de terror exploram o ocultismo, o sobrenatural, articulando os temores da classe média em relação ao seu declínio social, perda de moradia, dissolução da familia, ameaças vindas de outras classes, de outras raças. Filmes de terror sintetizam o medo do Outro. Quando o ocultismo começa a ter espaço é porque a sociedade já não está conseguindo resolver as suas crises do cotidiano, no cotidiano. Ao mesmo tempo que o sucesso do filme de terror nos traz os sintomas das doenças sociais, é reacionário, porque desvia para " forças do mal" esotéricas e intangíveis a clareza da origem das fontes reais de sofrimento social.

Como o sr. relaciona a narrativa com o problema?
Kellner: Em Poltergeist, p.ex, a familia perde a casa, a menininha foi raptada pela TV. Sinaliza o medo da perda de poder aquisitivo , o medo da tecnologia, o medo do excesso de TV na vida dos filhos. A série Beavis and Butt-Head da MTV, p.ex., é um diagnóstico do transe pelo qual passa a juventude insatisfeita dos nossos tempos, e sinaliza, principalmente, o discurso de uma juventude que foi criada pelo " úbere vítreo da tv" que as ninou, alimentou, ensinou, entreteu. É uma juventude que extrai da mídia todas as idéias que tem da vida, do mundo, da história. Tanto, que a revista Rolling Stone chamou a série de "a voz de uma geração". Preocupante!...Para mim, a série é um hieroglifo social: revela uma sociedade de famílias desagregadas e indivíduos anômicos, sem valores ou objetivos. Revela também um desejo de utopia sem regras, narcisismo, liberdade ilimitada, sem pais ou autoridades

Professor, o sr. fala muito no seu livro A Cultura da Mídia que deve-se ter uma abordagem multiperspectivica na crítica da mídia. Que proposta é essa?
Kellner: Nietzche diz que toda interpretação é mediada pela perspectiva de quem a faz, trazendo pressupostos, valores, preconceitos, limitações. Ou seja, é unilateral, comprometida. Por isso proponho que sejam usadas várias perspectivas, neutralizando a possível arbitrariedade de um só ponto de vista. Nenhuma teoria conta toda a história. É preciso combinar várias teorias em uma abordagem multiperspectívica : quanto mais teorias à disposição, mais tarefas poderão ser cumpridas, mais específicos os objetos tratados. Ex: marxismo mais feminismo mais psicanálise é muito mais útil que cada um sozinho. As perspectivas da visão multiperpectívica são sexo, raça, classe, marxismo, feminismo, estruturalismo, pós-estruturalismo, semiótica, psicanálise, história, ideologia, contexto, produção, recepção. É importante trabalhar inclusive com perspectivas opostas. A abordagem interdisciplinar ultrapassa disciplinas: sai do texto para o contexto

O sr. tem o dom equilibrado de separar, de cada teoria, o que acha útil, forte, do que acha limitado, fraco, mas sem rejeitá-las totalmente. Quais são os pontos fortes e fracos das teorias com as quais o sr. trabalha?
Kellner: Cada método tem pontos fortes e fracos: o marxismo é forte na contextualização histórica das classes e fraco na análise formal, sexual e racial. O estruturalismo é forte na análise da narrativa, mas excessivamente formal, abstrato demais, falta concretude. O feminismo é forte nos aspectos sexuais, mas fraco porque ignora raça e classe. A psicanálise é forte na hermenêutica do insconsciente e fraca nas determinacões sociológicas. Então, se você tem uma abordagem multiperspectívica, pode se valer do melhor de cada teoria em busca da verdade mais ampla, sem se prender restritamente a essa ou aquela abordagem.

No seu livro, inclusive, o sr. faz elogios e, ao mesmo tempo, críticas, a duas grandes escolas: a de Frankurt e a de Birmingham. Fale sobre isso.
Kellner:
Os frankfurtianos achavam que o público é passivo, os birminghamianos, que é ativo. Ambos exageraram. A cultura oferece as duas coisas: força de dominação e recurso para resistência e luta. A Escola de Frankfurt é carente de uma análise mais concreta, mais empírica, mais histórica, apregoa a dicotomia entre cultura superior e inferior, tem ideal de arte autêntica, crê que toda cultura de massa é ideológica, é determinista demais, monolítica, redutora , fraca na formulação de prática de oposição e em estratégias contra-hegemônicas e, ainda, não distingue codificacão de decodificação. É parcial e unilateral, mas útil: seu ponto forte são as noções de mercadorização, reificacão, crítica à ideologia e uso do método qualitativo (achavam o quantitativo insuficiente) Já os teóricos de Birmingham têm o mérito de subverter a distinção entre cultura superior e inferior - valorizam cinema, também, música popular, o ordinário, o comum, o popular - mas abandonaram a cultura superior. Precisamos valorizar todas as culturas, ficar atentos à diferença entre popular e populista, e também, tomar cuidado com os fetiches, que obstruem a crítica: " fetichismo do público", " fetichismo da produção", "fetichismo da resistência"," fetichismo do prazer do público". É tudo ao mesmo tempo imbricado. Precisamos articular relações e instituições sociais também, junto com a análise do texto ou do público, precisamos contextualizar. Fiske, por exemplo, um conhecido fetichista da resistência, fala entusiasmado da revista Hustler contrabandeada dentro da Life, que teria minado o conservadorismo da classe média, etc. Ok. Mas, ele esquece de ver que - do ponto de vista feminista - a revista Hustler é machista, coisifica a mulher, portanto, é reacionária, também. Resistente por um lado, reacionária pelo outro.

Como se detecta ideologia?
Kellner: A ideologia apresenta seus interesses particulares como se fossem universais, pega forças negativas e as mostra como positivas, apresenta construções históricas como se fossem naturais, de senso comum, mostra-se apolitica e tem forte retórica: é persuasiva, sedutora, mistificadora. Para Gramsci, cultura, sociedade e politica são terrenos de disputas entre varios grupos e classes. Há que se perguntar: quais disputas são essas? Entre que grupos? Quais suas posições? Segundo a visão gramsciana, as sociedades mantêm a estabilidade por meio de força - policial, militar - somada com a anuência à hegemonia praticada por instituições como escola, igreja, mídia. Assim, o que importa é identificar onde está a hegemonia e onde estão os grupos que poderiam resistir e lutar contra essa hegemonia. Devemos relacionar o texto da mídia com o discurso político da época e com outras produções culturais referentes. Dessa forma, a ideologia se escancara.

Enquanto muitos autores assumem a expressão "pós-modernismo", sem hesitar, o sr. diz que não estamos na pós-modernidade, mas em um lugar entre a era moderna e uma nova era pós-moderna. Por que o sr. não adere ao termo?
Kellner: O termo "pós-moderno" é um guardador de lugar, não exatamente pós-moderno, mas indicador de que estão acontecendo mudanças , coisas novas. As teorias são muito incongruentes entre seus teóricos , uns utopistas, outros nihilistas, não há uma coerência de teses que caracterize com clareza o que é pós-moderno. Por enquanto, estamos em um tempo de um "construto cultural", sintomático de fenômenos desconcertantes que ainda não conseguimos categorizar, nem entrar em consenso. Por enquanto, é apenas palco de guerras teóricas.

Quando o sr. fala de identidade contemporânea, dá a impressão de que hoje em dia se troca de identidade como quem troca de roupa. É isso?
Kellner
: A identidade é um construto a partir de papéis e materiais sociais disponiveis. E hoje em dia, a identidade do individuo moderno é ser sempre novo, transitório, mutável. Antes, identidade era função da tribo, do grupo, do coletivo, um negócio sério; girava em torno da profissão e da função na esfera pública ou familiar, implicava escolhas. Hoje, na sociedade de consumo em que vivemos, identidade é imagem, aparência, representação de papéis, gira em torno de jogo, lazer, teatro, ludibrio. Viramos " jogadores", players, não mais com identidade fixa, mas com quantas você quiser e puder. Identidade hoje é descartável. Na modernidade, o Outro é constituinte da nossa identidade, o Outro é quem valida a nossa identidade: você só é alguém se o Outro o reconhece. Para os teóricos pós-modernos como Baudrillard, o sujeito acabou - só existe massa, eu fragmentado. Para os estruturalistas, não existe sujeito fixo, sujeito é um construto de linguagem. Assim que, a identidade virou um jogo prazeroso de livre escolha do eu-mercadoria. A TV, aliás, ajuda a estruturar essa identidade contemporânea: assume a função de ritual coletivo e mito e, dessa maneira, " resolve" as contradições sociais com seus modelos de identidade. Veja Madonna: ora loira, ora morena, ora mundana, ora comportada, ora sexy, ora mãe de familia.

O sr. abdicou da sua conhecida admiração por Jean Baudrillard em favor do escritor cyberpunk William Gibson?
Kellner: O que Baudrillard denunciou em teoria do " admirável mundo novo da tecnologia", Gibson materializou em narrativas. Veja este texto, no livro Neuromancer, de Gibson: " o céu acima do porto tinha cor de TV sintonizada num canal inativo" . Acho que Baudrillard parou no tempo, depois dos anos 80: deveria ser lido hoje como ficção científica, enquanto Gibson, com sua ficção científica, deveria ser lido como um teórico social.

Que conselho o sr daria aos "midiocres", como ironiza o professor e jornalista Juremir Machado?
Kellner: Somos o que vemos e ouvimos, como somos o que comemos: evite a comida ruim da mídia e escolha produtos saudáveis e nutritivos. Esse é o meu conselho. •

(Entrevista simulada por Graça Craidy, baseada no conteúdo do livro A Cultura da Mídia (2001).

Douglas Kellner é professor de Filosofia da Educação, no curso de graduação em Educação da UCLA - Columbia University - desde 1997, quando trocou sua cadeira de Filosofia na Universidade do Texas, em Austin, onde lecionava há 24 anos. Foi um dos fundadores dos Estudos Culturais americanos, nos anos 70. Autor de inúmeros artigos e vários livros, entre eles Herbert Marcuse e a crise do marxismo,Camera Politica, A política e ideologia dos filmes de Holywood, Teoria crítica, marxismo e modernidade, Jean Baudrillard: do marxismo ao pós-modernismo e além, Televisão e a crise da democracia, A cultura da mídia (editado pela Edusc) e, ainda, O espetáculo da mídia, todavia não publicado no Brasil.

O professor Kellner é o que Gramsci chamava de " intelectual orgânico", ou seja, comprometido com as transformações sociais. Sua arma são os Estudos Culturais, e seu campo, a mídia. Kellner é um estudioso apaixonado da mídia, trabalha com exemplos concretos de programas de TV, fenômenos midiáticos como Madonna, filmes populares de Hollywood, eventos históricos noticiados pela mídia como a Guerra do Golfo, entre outros, buscando identificar os discursos de dominação e resistência, o modo como a mídia constrói identidades e comportamentos, e - fervoroso militante dos estudos culturais - persegue o que ele nomeia "pedagogia crítica da mídia", uma espécie de antídoto necessário para nos proteger da manipulação e dominação.


KELLNER, Douglas - A Cultura da Mídia - estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno - tradução Ivone Castilho Benedetti -
Bauru/SP - EDUSC - 2001 [ 1995]


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2 comentários:

  1. Ótima "entrevista" Graça!
    Até o final achei que estavas mesmo o entrevistando... Rsss!

    Abraços,
    Gustavot

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