Artigo: Entre a madona de Rafael e a madona de Bay City, rolou muita água oxigenada 30 vol.

No início dos anos 50, em plena época do hollywoodiano "Os Homens Preferem as Loiras", com Marilyn Monroe arrasando corações, o cantor Dick Farney tecia loas às blondes:
" Uma loura é um frasco de perfume/ Que evapora/ É o aroma/ De uma pétala de flor/ Espuma fervilhante de champagne/ Numa taça muito branca de cristal/ É um sonho/ Um poema". ( Uma Loira - Hervê Cordovil - 1951)
Quatro décadas depois, em meio às loiras do Tchan e a outras loiras mais famosas, o rapper brasileiro Gabriel Pensador esbravejava:
"Loira burra, você é vulgar, sim/ seus valores são deturpados/ você é leviana/ Pensa que está com tudo, mas se engana/ sua frágil cabecinha de porcelana/ A sua filosofia é ser bonita e gostosa/(...) Seus lindos peitos não merecem respeito/ marionetes alienadas, vocês não tem jeito./ (...) vocês são o mais puro retrato da falsidade/, desculpe, amor, mas eu prefiro mulher de verdade" ( Loraburra - Gabriel Pensador)

Mudaram as loiras? Talvez. Mas, o que realmente mudou foi a cultura onde as loiras se incluem. E mudou, principalmente, o conceito de cultura.
Entre a Madona de Rafael e a Madona popstar, digladiaram-se as idéias de cultura superior da Escola de Frankfurt e de cultura ordinária da Escola de Birmingham.

Para Raymond Williams, estudioso de Birmingham que inaugurou um novo olhar sobre a cultura, preocupado em compreender as mudanças na sociedade, cultura vai além de uma obra de arte, de um romance clássico ou dos allegros e vivaces de uma sinfonia musical. Cultura está também no cotidiano, na vida real, no em comum do dia-a-dia construído por pessoas comuns.

Em seu ensaio "Culture is Ordinary", publicado em 1958, Williams propôs uma reformulação teórica, uma reavaliação da tradição e a constituição de um novo campo, ao assumir a primeira pessoa na narrativa de um passeio aparentemente corriqueiro, onde visita uma catedral, transita de ônibus pela cidade e campo e observa a paisagem rural, urbana e humana, encerrando o seu primeiro parágrafo com uma tranqüila constatação: "Trata-se, de fato, de uma viagem que, de um modo ou de outro, todos nós já fizemos".

Raymond Williams

"O que une todos esses pontos díspares?"- interroga-se Maria Elisa Cevasco, em sua obra "Para Ler Raymond Williams" ( 2001). Em princípio, uma experiência comum. Mas, reveladora - diz ela - de um movimento histórico mais amplo. Quando Williams narra que estudou na escolinha da vila, na escola secundária local e mais tarde na Universidade de Cambridge, conta ao mesmo tempo - em outras palavras - de um momento histórico, político, econômico, social e cultural em que foi possível esse salto qualitativo de alguém da sua classe sair da vila para a elitista Cambridge.

Com sua história comum, Williams pretendeu demonstrar que "a cultura é de todos", uma experiência ordinária e pessoal, e não apenas uma instância separada, erudita e protegida de conhecimentos raros para poucos privilegiados, como queriam a escola clássica iluminista do século 18 ou Adorno e seus companheiros críticos da Indústria Cultural, no século 20.

Apoiada na opinião de E.P.Thompson, que vê "cultura como um modo de luta", Cevasco observa que há uma disputa histórica de sentido para a palavra "cultura", cumprindo funções sociais diversas. Tanto que - ela lembra - existem pelo menos três sentidos para a expressão, além do tradicional de "cultivo agrícola": o de processo de desenvolvimento mental, o de designação de um modo de vida específico e, ainda, o de práticas de atividade intelectual, especialmente artística.

Mas - Cevasco ressalta - nenhum sentido é excludente. Para ela - inspirada em Williams - o valor de uma obra de arte individual está na integração particular da experiência do coletivo onde o autor vive:
"é uma seleção e uma resposta ao modo de vida coletivo sem a qual a arte não pode ser compreendida e nem mesmo chegar a existir, uma vez que seu material e seu significado vêm deste coletivo."

Guernica, de Picasso.

Ou seja: um gênio como Picasso traz na sua arte o sangue das touradas andaluzas, o perfume adocicado do açafrão das paellas, o sapatear tamboresco das bailantes de flamenco, o lamento mouro de suas cantorias, o vermelho dos gerânios pendurados nas paredes caiadas das pequenas calles onde viveu. Sua obra mais famosa - Guernica - é o retrato dolorido de um povo massacrado pelas garras do ditador Franco. Haveria uma Guernica sem a história espanhola, sem o povo espanhol? Provavelmente, não.

Totalizante, Raymond Williams aderiu a todas as acepções da palavra cultura, dando aceite tanto à cultura superior como à popular e afirmando que a sociedade se constrói e reconstrói em cada modo de pensar individual, primeiro aprendendo, depois comprovando e construindo novos significados e experiências. Quer dizer: qualquer cultura é tanto tradicional quanto criativa, como num processo espiral dinâmico de retroalimentação. "Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um modo de vida - os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado - os processos especiais de descoberta e esforço criativo.", explica Williams, que insiste nos dois sentidos e na importância da sua conjugação.

Como exemplo, pode-se tomar uma cultura considerada superior feito a do alemão Wilhelm Reich, que revolucionou a Psicologia ao provar que a neurose é produzida socialmente, pela repressão da energia vital/sexual, gerada pelo pensamento mecanicista, em favor do trabalho e da produção. Conforme Reich, a neurose se instala no corpo, não apenas na mente. A energia estagnada e reprimida, ao não encontrar escape, se distorce em doença, gerando assim a neurose.

Conjugando à moda Williams, se poderia tomar, em paralelo, uma frase bem popular do sertanejo Riobaldo - personagem narrador da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas - que, ao concluir uma de suas muitas história contadas a um interlocutor invisível, resume - em palavras simples e ordinárias - a sofisticada teoria reichiniana: " quem muito se evita, muito se convive".

Cultura superior e cultura ordinária, de fato, têm muito em comum.

Para o filósofo Edgar Morin, em sua obra O Método ( 2002), a cultura é “ o primeiro capital humano” e, junto com a linguagem, inaugura a fase sapiens do homem. Metafórico, Morin explica a cultura como um megacomputador complexo que guarda na memória todos os dados cognitivos e suas normas:
“cada espírito/cérebro individual é como um terminal individual, e o conjunto das interações entre esses terminais constitui o Grande Computador”
que constrói o modo de vida comum e, wiliamsmente, inspira obras de artes.

Douglas Kellner

Já o americano Douglas Kellner, em seu livro A cultura da mídia ( 2001) pesquisa focado nos meios de comunicação de massa e acredita que o tecido cotidiano é tramado pela cultura que a mídia divulga, modelando opiniões politicas, comportamentos sociais, senso de classe, etnia, raça, nacionalidade, sexualidade, visão de mundo, valores. Enfim, material para construção de identidade pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnocapitalista contemporânea e produz uma cultura comum.

Talvez por isso, por essa cultura adjetivada - "da mídia"- onde quase tudo serve aos interesses do mercado, a arte pretensamente superior contemporânea resultante desse coletivo parido do " simulacro " - segundo Jean Baudrillard - seja chamada pelo francês de "pastiche do banal pop". Ainda que crítico, ao que parece Baudrillard também compactua do mesmo sentido ordinário de cultura de Williams.

A respeito do desprezo aristocrático "versão casa de chá" - como ironizou Williams - pelas massas, o pensador de Birmingham é enfático e conclusivo: "Não há massas; apenas maneiras de ver os outros como massas".

O que Raymond Williams fez pela cultura (e pelos Estudos Culturais) ao arrebatá-la do pedestal de sagrada para misturá-la ao cotidiano, é uma revolução oxigenante e democrática no modo de ver a sociedade e suas mudanças. E não nos tornou apenas mais sábios e entendedores da realidade. Nos tornou mais humanos.
(Graça Craidy)

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Um comentário:

  1. Ana Coiro escreveu:
    Amei!!! Aliás, o teu blog já foi tema de uma tal 'avaliaçãoglobal' e/ou 'provão' inventado e levado a cabo, todo semestre, pelo curso de pp da instituição em q trabalho. O post foi aquele sobre o Nizan e o seu after 8.
    bjs

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