Rossano, amore mio.

Final dos anos 90. Vez ou outra eu conversava com ele pelo chat. Oi-tudo-bem-calor-aí? Aquela moleza gentil que - juro! - não mexia com uma grama dos meus hormônios, mas eu gostava.

Quer coisa mais confortável que uma reserva técnica para diálogos leves em noites de garoa paulistana, na preguiça do lar, os pés enfiados em inconfessáveis pantufas?

O sábado estava frio. Recém eu tinha voltado de um jantar com uma amiga, onde repartimos vinho, peixe, risos, fofocas, pasmos e, claro, o mesmo assunto que habita recorrente todos os baloons de prosas mulheris: homens.

Duas sem namorado a suspirar por um, entre goles de Valpolicella. Muito peculiar!

Pois, chegada em casa e retomado o meu velho kaftan cingapuriano, eis-me tela-a-tela no chat com o moço aquele da não-testosterona.

- É, um peixinho, um vinhozinho...- contava eu, em pleno exercício do kit insosso e inodoro.
- Ah, você curte peixe e vinho?...Eu também!

Sabe-se porque, aquela noite resolvi pôr um pouco de tabasco no papo e, junto com o menu do jantar, adicionei - marota - a informação de que me encontrava em um momento muito especial de assumir meu lado feminino, que tinha deixado crescer o cabelo, passado a usar salto alto, roupas mais justas. Pimentinhas irresponsáveis jogadas ao léu.

Ato contínuo, borbota pavloviana a indefectível reação masculina:
- Que tal um vinhozinho, dia desses?
- Claro, por que não? - respondi educadamente, pensando ao mesmo tempo aimeudeusinhodocéu!...
- Que tal amanhã à noite?

Engoli em seco, do outro lado da tela. Quem mandou provocar?

Putz! O cara entrou numas de tomar vinho comigo domingo à noite! Não basta a inhaca natural domingão de faustãofantástico, me aparece agora um sem-rosto, conversa morna, e ainda vou ter que bancar o modelito moça-gentil e, acrescente-se em tempo, gostosa?

- Amanhã, domingo? - engambelei.
- É. Passo aí e apanho você. Tudo bem?

Não tive como. Ia parecer grossura recusar . Afinal, o cara não estava me convidando para intimidades febris - era óbvio! - apenas para um previsível confronto de curiosidade estética, aliado a um modorrento vinho que eu esperava não fosse daqueles com falsos nomes franceses ou, pior, alemães.

Assim combinei. E assim deletei. Obnubilação total dos sentidos.

8 da noite do dia seguinte, estava eu na sesta dominical pós algum almoço tardio, toca o telefone na mesa de cabeceira, feito curra acústica.
- Alô, Graça? Sou eu...Tô chegando. Pode descer?

Cazzo! Esqueci do homem, do vinho. E agora?

Minha voz meio pastosa inventou uma desculpa de atraso e pediu pra ele estacionar nas vagas de visitantes do prédio, já-já ia descer.

Um pé cá, outro lá, entre puta-merda-puta-merdas!, tomei uma chuveirada, passei a mão no primeiro pretinho básico que se oferecia no armário, enfiei os pés na sandália marrom altíssima - dane-se se o cara for pequeno! - e saí voando porta afora. Elevador. Botão do térreo. Um último batom no espelho do Otis e fui, rumo à portaria.

O passo ralentou: aimeudeusinhodocéu! Nem sei a cara da criatura! E se for um esquisito? Assassino? Um chato de galocha? Se usar peruca? Falar menas? Menos, Graça, menos! Não vai casar com o homem, mulher! ( Engraçado, essa frase "não-vai-casar-com" sempre me acalma, desde menina...)

Parei de arrastar os pés que postergavam o encontro, abri, corajosa, a porta de vidro e...uau!

Encostado displicentemente em uma BMW prateada, braços cruzados, sorriso cheio de dentes muito brancos e exalando testosterona por todos os poros, me surgiu do nada a versão Herbert Richers de um ídolo da adolescência: Rossano Brazzi, ele, o italiano das minhas matinées no cine América de Ijuí.

Meu olho deve ter arregalado, meus joelhos deram uma baqueada, nem sei como não caí da sandália de plataforma marrom.

Sim, eu quero! - foi meu primeiro pensamento, vergonhosamente adesista de último minuto.

Meio hipnotizada, abri um sorriso de boas-vindas e disse oi com aquela naturalidade langorosa inconsciente que mulher adota quando vai seduzir.

Entrei no carro e desatei a falar uma letra atrás da outra, numa fieira de conversa comprida que durou horas: antes, durante e depois do vinho (cujo, por sinal, nem lembro a marca).

Se a boca parava pra ouvir, o olho ficava extasiado passeando em zoom no rosto do interlocutor, perscrutando cada pedaço: a sobrancelha grossa, o nariz aquilino, os lábios fartos, bem desenhados e - aiaiai! - uma pontinha quebrada no dente da frente, anzol fatídico fincado no meio daquele sorriso deslumbrante.

Ele falava baixo, contando da vida, gestos tranqüilos, a mão honesta, morena, unhas impecáveis. Mão de homem,aiaiai!... Quanto mais calmo ele, mais meu sangue bolia histérico nas veias. Vontade de morder aquela mão!

No caminho de volta, parados num farol, ambos quietos, ouvi Rossano falando baixinho, como se sussurasse pra ele mesmo: - gos-tei!

Fiz que não ouvi, em respeito ao segredo traído, mas lá no fundo meu coração cambalhotou destrambelhado.

Carro no pátio do prédio, aquele instante tudo ou nada de tchau-a-gente-se-fala, inclinei o corpo e, numa ousadia desaforada, em vez de beijá-lo no rosto, rocei-lhe os lábios, selo moleque.

Pra quê?

Não tive tempo de retornar o corpo ao encosto do banco, aquela mão morena me agarrou pelo queixo e deu-se ali o beijo na boca mais technicolor e estonteante das últimas Metro Goldwin Meyer Productions.

Rossano Brazzi e Graça Craidy, créditos subindo lentamente. Suspiros na platéia. The end. Letreiro final: a seguir, na casa mais perto do seu cinema. (Graça Craidy)

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A pré-estréia de um beijo.


E porque prometi ao Francisco que hoje iria até ele só pra lhe dar um beijo, o dia já amanheceu beijado.

Tudo o que fiz antes suscitou em som de dentro o roçar macio de bocas, cortina nublando o olho em lembrança antecipada, alheado o pensamento, o gesto desamolecido da intenção do músculo, sem saber mais a que vinha.

Um beijo a entregar!...Só porque me prometi em lábios ao Francisco, até o café que passei para um gole trivial de acorda-menina me inebriou diferente. A água borrando o pó gorgolejava mansa dizendo anda, anda, que hoje ela vai beijar Francisco!

No bosque em frente, em cada galho escondido dos eucaliptos, a bemtevizada se algariou em malícias dedo-duras avisando a vizinhança que tinha visto, sim, bem me visto: aqui se preparava um beijo pra Francisco.

E porque a boca no rosto e, ao redor dele, a moldura, o ritual de pentear também já começou antes, muito antes de um mero banho cotidiano. Cada jorro da água que molha a cabeça desenhou boas-vindas ao beijo antecipado, se intrometendo nas raizes, escorregando entre os dedos e o shampoo, zerando tudo que o sabão lava para que o beijo em Francisco chamasse carícias novas de se enovelar em pelos.

Então, os pés, nem sempre coadjuvantes explícitos, bem se diga, mas, uma mulher que preza o Francisco a quem beijará jamais olvidaria o zelo de cada unha e calcanhares, porque, se sabe, mulher que beija assim - de promessa feita - traz sempre em si a tácita disposição de enroscar o pé no homem a quem enlaça o pescoço. Que beijos têm disso: impelem a desnudamentos não planejados, súbitas vontades de arrancar sapato e roupas, desdomadas e imprevisíveis implosões hormonais.

E, ainda que eu só houvesse jurado beijo, e ainda que beijo se doe com singela boca e saliva e língua, neste dia cuidei de todos meus avessos e direitos, em cuidados de noiva prometida. Não importa se Francisco merece, não importa se Francisco é rei ou mendigo de quereres, se me retribuirá em dentes e delírios, ou simplesmente selará o encontro, seu ósculo, uma vulgar reticência.
Neste dia em que prometi a Francisco um beijo, minha mercadoria tão frágil e fugaz carregaria dentro a infinita delicadeza da fêmea servindo em doce bandeja o flash fátuo da eternidade do afeto. ( Graça Craidy)

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Por qué no te callas, gansolina?

Ela tinha o péssimo hábito de sentar no canto esquerdo do sofá fino de brocado da Vó Jujuca e tirar os chinelos, colocando os pés enormes e sujos de poeira sobre as tiras de couro do calçado, como se estivesse bem bela espalitando os dentes no sofá barato da sua casa, certamente um daqueles axadrezados de braço gordo combinado com retângulos de madeira lustrosa.

Não bastasse isso, quando ela levantava para ir à cozinha buscar um copo d’água, saía arrastando os chinelos sem calçá-los, num ritmo mazzaropiano, surfando toscamente, primeiro um pé, depois o outro, no piso chique de tábua corrida da sala de jantar da velhinha, deixando no rastro a sua estupidez.

Alta, corpulenta, uns 50 anos, loira escorrida como toda boa alemã, ela tinha os traços até bonitos, olhos azuis, boca bem-desenhada, nariz aquilino, não fosse uma desagradável impressão de sujeira e engorduramento que passava, o cabelo sempre oleoso, a pele brilhante, a barriga gorda e mole esparramada para frente, o andar de marreca dez-pras-duas e um jeito caborteiro de olhar meio oblíquo, com um canto da boca sempre torcido para baixo, quase uma caricatura de sorriso irônico. Sem falar na voz esganiçada e aos trancos, com o volume religiosamente acima do suportável em qualquer convívio civilizado.

No segundo dia em que Marta Helena se hospedou na casa da Vó Jujuca, pressentiu que seria uma guerra surda entre ela e a nova acompanhante da velhinha.

Olhar para a tipa já dava um arrepio de repugnância. Olhar para ela comendo, então, dava vontade de vomitar. Mas, não. Em respeito à Vó Jujuca que acabava de se recuperar de um derrame, ficavam as três jantando juntas e, enquanto a velhinha tomava sua sopa em brancas nuvens, sem nem perceber o que se passava ao redor, Marta Helena comia silenciosamente horrorizada com aquela valquíria mastodonte sorvendo cada colherada de sopa em sonoros ruídos do líquido rolando na língua, acompanhados – que nojo! – de generosas fatias de bolo que ela comia com sofreguidão suína, enquanto falava e falava e falava ao mesmo tempo, revelando a uma Marta Helena nauseada todos os segredos dos farelos do bolo de um lado para o outro no dentro da sua boca, misturados à sopa, entre cenouras e batatas esmigalhadas.

Marta Helena jamais esquecerá do odioso cacoete que a mulher tinha de falar “ ó!”, entre uma frase e outra, como se puxasse a pessoa pelo cotovelo pra prestar atenção no seu assuntinhozinhoinho. - Assim, ó, então eu disse, ó, que ia fazer, ó, mas ela falou, ó, que não adiantava, ó….E Marta Helena ali, feito o rei da espanha, a pensar: por qué no te callas, por qué, por qué, por qué?

Depois da janta, sagrado: Jornal Nacional. Vó Jujuca dormitando na poltrona, a gansolina no canto do sofá com os abomináveis pés de fora e Marta Helena quieta como um sapo de enfeite no outro canto, em seu martírio cotidiano.

Foram 60 longos e intolerantes dias de convivência forçada com a frau porca, em que ela pediu demissão pelo menos três vezes à filha da Vó Jujuca, gestora da casa, queixosa de algum comentário ríspido de Marta Helena, naqueles casos extremos em que não conseguiu se controlar perante o ser desagradável. A filha, porém, tratou de dissuadir a shrek tedesca, com a promessa garantida de que logo,logo Marta Helena iria embora e tudo voltaria ao normal outra vez.

Santas palavras! Depois que Marta Helena voltou para sua cidade, tudo amainou e até abraços acabou mandando à gansolina, quando ligava pra saber de Vó Jujuca. O bem que faz, ó, uma distância, ó!...( Graça Craidy)

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Meu coração jorrou sangue azul-royal lavável.

A lembrança dos meus 15 anos é uma tarde fria de inverno de julho, com sol e uma praça no meio. Naquele longínquo ano de 1966, quando tudo ainda se oferecia como um imenso mundo por descobrir, a menina-moça Graça era uma mistura esquizofrênica de mulher feita com garota amedrontada e agressiva.

O corpo já estava pronto, curvas fartas, cintura fina, pernas grossas. A cabeça, um emaranhado de porque-sins e porque-nãos, ora exclamativos, ora perguntas, o mais das vezes reticências, que adolescente convicto é filho de ficção, nunca sabe direito se quer, se gosta, desgosta, de onde veio, para onde vai e, principalmente, por que esta espinha tinha que nascer bem aqui na testa e logo hoje que tem baile?

Porém, no enredo daquele tango, havia espaço para um galã, um belo galã moreno no auge dos seus 18 anos.

Yunes, libanês como meus avós, era filho primogênito dos Kfouri, nossas famílias imigrantes unidas pelo passado na terra do cedro eterno. Irônico, inteligentíssimo, machista, cheio das exigências, ele me privilegiava com sua atenção muito mais por minha apregoada intelectualidade de estudante primeira da classe - eu achava - que por meus dotes físicos, aliás, totalmente fora do padrão da época, onde uma Twiggy magérrima e de peito liso acentuava ainda mais quanto sobrava em mim o que nela desabundava.

Nem sei quantas mil voltas demos ao redor da antiga Praça da República, naquelas férias de julho, Yunes e eu, peripateticamente conversando feito dois velhinhos precoces sobre coisas sérias, profundas, sobre o que iríamos ser quando crescêssemos. Aquele olho castanho árabe com cílios espessos tentava me perscrutar os pensamentos mais escondidos - eu percebia - ao mesmo tempo em que também tentava me domar - isso eu também percebia - se fazendo superior para dar prova do quanto sempre eu estaria pelo menos um degrau abaixo dele, o poderoso homem, masculino, singular. (Pode-se imaginar o grau de macheza contido na explosiva combinação árabe com gaúcho, naqueles idos dos anos 60...)

Nada como um desafio desses para eu exercer minha pior rebeldia e irreverência contra o supremo desaforo de Yunes querer me " quebrar o corincho", como se diz na campanha. Freud explica: filha mulher de pai árabe tudo que sonha é se libertar do cabresto, jamais trocar espontaneamente de domador.

No entanto, meus hormônios recém em ebulição não queriam nem saber dessa conversa íntima libertária. Eu tinha, sim, atração por Yunes e mais todo o kit que compunha sua fascinante personalidade. Óbvio que eu não ousava confessar, nem para mim, quanto mais para ele. E óbvio, também, que eu não me atrevia a agarramentos, que para essas ousadias a permissão paterna era zero vezes zero. Mas, uma brincadeira de mão daqui, um empurrãozinho infantil de lá, só sei dizer que ali tinha coisa - ah, se tinha! - qualquer um que botasse reparo, de fora, poderia jurar.

Sábado à noite, reunião-dançante na casa de uma das meninas da turma, todo mundo dançando twist, hully-gully, os puladinhos de Ray Conniff e Herb Alpert, as canções do Roberto ou Sergio Endrigo e - a mais esperada de todas - a mela-rela Je t'aime, com Jane Birkin em gemidos que a gente fazia de conta que não ouvia, mas se deliciava, sim, com cada ai. Eis que Yunes surge no meio da pista, me puxa pelo cotovelo e faz sinal com a mão. Queria falar comigo lá fora, na rua, em frente à casa.

Caminhando atrás dele, toda catita no meu vestido de musseline estampada e sapato de salto azul-perlê, eu pensei: - Ih! que será agora? Esse guri, em vez de me tirar pra dançar, me tira da festa?....Na verdade, eu estava era nervosa por aquela súbita intimidade forçada à luz da lua.

Yunes me levou até debaixo de um poste, na calçada vazia, quase um quarteirão longe da festa. Só hoje atino com como ele estava atormentado, rosto sombrio, um olho cavo que não me encarava, a luz fria acentuando sua palidez.

Sem dizer palavra, tirou do bolso um pacotinho toscamente embrulhado em papel pardo e várias vezes cingido com barbante até o laço final.

E me estendeu aquilo, como quem diz: - seja o que deus quiser! Também eu sem dizer palavra, misto de taquicardia e gato felix, agarrei o embrulho, desamarrei o laço, segurei o barbante numa mão e, de tão tremendo, deixei cair no chão o conteúdo do pacote.

Como aves desarribando, dezenas de papéis de diferentes tamanhos e texturas, escritos à mão, se esparramaram na pedra irregular da rua.

Enquanto eu catava atabalhoadamente o ar, me imiscuindo no poema vivo que aquele momento único desenhava debaixo da feérica luz do poste, vi Yunes virando as costas e indo embora, passos lentos rumo à Rua 15 de Novembro, me abandonando na cena feito anjo do paraíso acabado de cumprir missão.

Indecisa entre pedir que ficasse ou devorar os segredos do seu singelo pacote, permaneci ali, muda e pasma, sentada na sarjeta, em busca de desvendar a tinta dos seus escritos, lembrança por nunca se apagar.

Eram ilhas, os papéis. Cândidas ilhas brancas, rodeadas de rimas de eu-te-amo azul-royal lavável por todos os lados.( Graça Craidy)

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Essa moça tá diferenciada, já não me conhece mais.

Eu já tinha uma certa implicância quando alguém vinha com essa conversa de "diferenciado" pro meu lado, desconfiando que por trás dessa palavra metida a cult tinha uma pegadinha suspeita, alguém querendo me engrupir alguma coisa, me vender gato por lebre, me tapear, me fazer cair em armadilha, esconder algo mal cheiroso com gotinhas de Chanel 5.

Agora, então, com a notícia de que a moradora chique do bairro Higienópolis de São Paulo assinou uma petição com seus pares contra uma estação de metrô no bairro, sob a alegação de “Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada…”, fiquei com mais nojo ainda.

Diferenciado é do reino do politicamente correto, o conceito mais hipócrita que os Estados Unidos exportaram para o mundo, incensados por seu eterna mea culpa protestante, espécie de "sepulcro caiado" atualizado. Você finge que respeita, mas é literalmente só da boca pra fora.

Diferenciado é bem isso: você faz de conta que entende e aceita o Outro, o diferente de você, mas o máximo que você consegue é falar a palavra "diferenciado". Assim, oco de consciência e de sentimento.

A madame de Higienópolis, bem como a madame aquela da música de Haroldo Barbosa, não só não gosta que ninguém sambe, mas também que ninguém ande de metrô, aliás, prefere que gente assim não exista ou, pelo menos, que não ultrapasse a cozinha. A madame de Higienópolis falou "diferenciado" como quem diz "diferente", mas o que ela quis dizer, mesmo - todo mundo já entendeu - era "essa gente diferente de mim que sou chique, essa gente-gentalha".

Pode prestar atenção. Quando anúncio imobiliário, por exemplo, vem com o papo de "apartamento diferenciado" pro seu lado, levante as orelhas. Diferenciado - imobiliariamente falando - quer dizer que o apartamento é um ovo, ou que é tipo loft, que eles roubaram as paredes, ou que é tipo masmorra, que eles roubaram a janela do banheiro. Alguma roubada assim. Não entendo como ousam roubar as janelas exatamente do lugar que - por razões óbvias - mais carece de ventilação em toda a casa. Você se dá conta de que a construtora economizou nos tijolos, no cimento, na tinta, nos canos, em tudo que vai dentro de uma parede, pois o apartamento loft-diferenciado não tem parede, mas o preço diferenciado é geralmente mais caro do que os apartamentos que têm parede. Quer dizer: diferenciado é você, que acreditou na alegoria deles e paga a mais pela roupa do rei que está nu.

Tempos atrás fui com meu marido comprar óculos escuros numa ótica dessas de rua. Não era nem de shopping, onde o assalto está institucionalizado. E quase desmaiei quando a vendedora nos passou o preço de um óculos normal, estilo rayban, assim, sem nem tremer a voz, nada, como se fosse a coisa mais normal do mundo: - R$2.500,00 - disse ela. Ao que eu, imediatamente, após juntar meu queixo do chão, não pude me furtar: - Putz! que caro! Mas ela não se deu por vencida. Do alto da sua cara de pau necessária para aquela função, me respondeu: - Realmente, o óculos tem qualidade, por isso é um preço diferenciado. Em vez de ficar quieta com o olhar de deixa-pra-lá que meu marido me telegrafava, não aguentei: - Diferenciado, não, moça. Caro pra caramba!

Pois sabe que a tipa não se michou? Apontou pra armação de óculos que ela carregava em seu próprio nariz e me esnobou, feito a madame lá de Higienópolis: - Sabe quanto eu paguei por este óculos aqui? R$4.200,00. Diferenciado, senhora!

Claro que eu quis bater nela, ou pelo menos ganhar no bate-boca, não fosse meu marido me arrastar pelo braço porta afora, enquanto eu tartamudeava com uma leve baba escorrendo do canto da boca:- Diferenciado, a vaca disse diferenciado de novo!

De modos que a próxima vez que alguém vier com essa prosa de diferenciado pro seu lado, encoste imediatamente o seu bumbum na parede, cruze os dois dedos indicadores na frente dos olhos e fale bem alto, pra todo mundo ouvir: - Te esconjuro, fi-duma-égua!
(Graça Craidy)

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Vesti azul. Minha sorte então mudou.

Foto: Carlos Souza.

Deus me livre de andar pela vida vestindo vermelho, aquele sangror cobrindo nudez como se virasse a gente do avesso, expondo o de dentro das carnes.

Não gosto disso de extremos, radicalismos, lados só de lás ou lados só de cás. Um bom azul e estamos conversados! Meu negócio é a trilha do meio. Sempre achei que esse, sim, era o caminho mais curto pra chegar a qualquer lugar. Isto é, chegar inteira, a salvo, sem pedradas, cuspidas, apupos, cochichos ou assobios, quero dizer.

Alguém pode até achar que vestir-se de amarelo é capaz de atrair bons fluídos solares, como aconselham os cromoterapeutas ortodoxos. Mas, cá para nós, a-ma-relo? Aquela coisa meio ovo, meio melenta, meio desesperada? Não dá para imaginar um sujeito digno, discreto, passante altivo, vestido de gemada. Tudo, menos amarelo!

Azul, sim! O cidadão garante o respeito quase instantâneo, tem o poder metafísico de fazer amigos e influenciar pessoas, sem nem carecer palavra. Um efeito Dale Carnegie automático. Azul, o interlocutor já olha diferente, perscruta o íntimo do vestinte, certo de encontrar ali só nobres sentimentos, galhardia, fidúcia, um espírito assim até um tanto alfazêmico, eu arriscaria dizer.

Tem gente que ousa ignomínias e atreve-se à heterodoxia de vestir-se de rosa, como se pudesse passar incólume pela vida alguém que se arrisca a tamanha desfaçatez. Ora, rosa!...O próprio nome já indica: isso é coisa de flor. Quero saber de rosa, não, minha filha. Eu sou é de outro disco de Newton!

E verde? Como já dizia meu velho pai que nunca na vida permitiu sequer listrinha de pijama dessa cor, reagindo sempre do mesmo jeito e com um olhar horrorizado: - Verde de integralista e milico? Jamé! Que meu nome não é Plínio Salgado nem falo evoé...

Marrom, então, nem precisa de explicares e argumentares. Chama uruca, ouvi. Conheço uma penca de gente que quer ver o diabo pintado de ouro, mas não veste marrom. Roberto Carlos que o diga! Aliás, Roberto Carlos sabe das coisas: o Rei usa e abusa de que cor, de que cor?

Sem falar em preto. Não sei o que deu nesse mulherio de hoje - oprimido pela ditadura da magreza - que só se veste de não-cor. Hordas e hordas de viúvas invadiram escritórios, bares, festas, passarelas e - heresia das heresias - até casamentos! Outro dia, mesmo, estava eu em um bar com um amigo, ele me pergunta, encafifado:- por que raios as mulheres só se vestem de preto? Olhei ao redor, fiquei pasma: todas, rigorosamente todas as fêmeas presentes pareciam personagens de um filme noir, como se um ente inferior tivesse dado sumiço no arco-íris e Cartier Bresson se comprouvesse em cliques flagrantes de um carpideiro espírito pós-moderno.

Azul, não! O mundo inteiro se vestiu de blue-jeans e atrás dele veio uma só mensagem prazerosa e deliciosamente aliciante: faça amor, não faça guerra!... Nunca se soube de uma criatura no planeta que fosse contra o azul. Inclusive, nos Estados Unidos, o azul é um lídimo representante da classe trabalhadora: blue-collar, eles falam, referindo-se à working-class que assumiu o jeans inventado por Levis nos tempos da Corrida do Ouro. Só perde, mesmo, em fama, para os white-collars, que, porém, conspurcaram-se com a sujeira das famigeradas corrupções, chamadas soberanamente pela imprensa de crimes do colarinho branco.

Por sinal, sem querer puxar a brasa para o meu assado, Fernando Pessoa ficou famoso, de fato, com o seu poema Mar Portuguez (aquele da alma que não é pequena ) quando concluiu, em loas ao azul: " Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu."

Por essas e por outras é que eu não vacilo, não mudo de opinião, nem penso duas vezes. Na hora de escolher uma meia, uma camisa, uma calça, um sapato, uma saia, um blazer, uma calcinha, um isqueiro, uma barra de giz que seja ou até mesmo um carro, os amantes de outras cores que me perdoem, mas eu, a degas aqui, fecho com a cor da casa do Cara lá de cima. Per omnia saeculorum, azul.
( Graça Craidy)

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Artigo: Entre a madona de Rafael e a madona de Bay City, rolou muita água oxigenada 30 vol.

No início dos anos 50, em plena época do hollywoodiano "Os Homens Preferem as Loiras", com Marilyn Monroe arrasando corações, o cantor Dick Farney tecia loas às blondes:
" Uma loura é um frasco de perfume/ Que evapora/ É o aroma/ De uma pétala de flor/ Espuma fervilhante de champagne/ Numa taça muito branca de cristal/ É um sonho/ Um poema". ( Uma Loira - Hervê Cordovil - 1951)
Quatro décadas depois, em meio às loiras do Tchan e a outras loiras mais famosas, o rapper brasileiro Gabriel Pensador esbravejava:
"Loira burra, você é vulgar, sim/ seus valores são deturpados/ você é leviana/ Pensa que está com tudo, mas se engana/ sua frágil cabecinha de porcelana/ A sua filosofia é ser bonita e gostosa/(...) Seus lindos peitos não merecem respeito/ marionetes alienadas, vocês não tem jeito./ (...) vocês são o mais puro retrato da falsidade/, desculpe, amor, mas eu prefiro mulher de verdade" ( Loraburra - Gabriel Pensador)

Mudaram as loiras? Talvez. Mas, o que realmente mudou foi a cultura onde as loiras se incluem. E mudou, principalmente, o conceito de cultura.
Entre a Madona de Rafael e a Madona popstar, digladiaram-se as idéias de cultura superior da Escola de Frankfurt e de cultura ordinária da Escola de Birmingham.

Para Raymond Williams, estudioso de Birmingham que inaugurou um novo olhar sobre a cultura, preocupado em compreender as mudanças na sociedade, cultura vai além de uma obra de arte, de um romance clássico ou dos allegros e vivaces de uma sinfonia musical. Cultura está também no cotidiano, na vida real, no em comum do dia-a-dia construído por pessoas comuns.

Em seu ensaio "Culture is Ordinary", publicado em 1958, Williams propôs uma reformulação teórica, uma reavaliação da tradição e a constituição de um novo campo, ao assumir a primeira pessoa na narrativa de um passeio aparentemente corriqueiro, onde visita uma catedral, transita de ônibus pela cidade e campo e observa a paisagem rural, urbana e humana, encerrando o seu primeiro parágrafo com uma tranqüila constatação: "Trata-se, de fato, de uma viagem que, de um modo ou de outro, todos nós já fizemos".

Raymond Williams

"O que une todos esses pontos díspares?"- interroga-se Maria Elisa Cevasco, em sua obra "Para Ler Raymond Williams" ( 2001). Em princípio, uma experiência comum. Mas, reveladora - diz ela - de um movimento histórico mais amplo. Quando Williams narra que estudou na escolinha da vila, na escola secundária local e mais tarde na Universidade de Cambridge, conta ao mesmo tempo - em outras palavras - de um momento histórico, político, econômico, social e cultural em que foi possível esse salto qualitativo de alguém da sua classe sair da vila para a elitista Cambridge.

Com sua história comum, Williams pretendeu demonstrar que "a cultura é de todos", uma experiência ordinária e pessoal, e não apenas uma instância separada, erudita e protegida de conhecimentos raros para poucos privilegiados, como queriam a escola clássica iluminista do século 18 ou Adorno e seus companheiros críticos da Indústria Cultural, no século 20.

Apoiada na opinião de E.P.Thompson, que vê "cultura como um modo de luta", Cevasco observa que há uma disputa histórica de sentido para a palavra "cultura", cumprindo funções sociais diversas. Tanto que - ela lembra - existem pelo menos três sentidos para a expressão, além do tradicional de "cultivo agrícola": o de processo de desenvolvimento mental, o de designação de um modo de vida específico e, ainda, o de práticas de atividade intelectual, especialmente artística.

Mas - Cevasco ressalta - nenhum sentido é excludente. Para ela - inspirada em Williams - o valor de uma obra de arte individual está na integração particular da experiência do coletivo onde o autor vive:
"é uma seleção e uma resposta ao modo de vida coletivo sem a qual a arte não pode ser compreendida e nem mesmo chegar a existir, uma vez que seu material e seu significado vêm deste coletivo."

Guernica, de Picasso.

Ou seja: um gênio como Picasso traz na sua arte o sangue das touradas andaluzas, o perfume adocicado do açafrão das paellas, o sapatear tamboresco das bailantes de flamenco, o lamento mouro de suas cantorias, o vermelho dos gerânios pendurados nas paredes caiadas das pequenas calles onde viveu. Sua obra mais famosa - Guernica - é o retrato dolorido de um povo massacrado pelas garras do ditador Franco. Haveria uma Guernica sem a história espanhola, sem o povo espanhol? Provavelmente, não.

Totalizante, Raymond Williams aderiu a todas as acepções da palavra cultura, dando aceite tanto à cultura superior como à popular e afirmando que a sociedade se constrói e reconstrói em cada modo de pensar individual, primeiro aprendendo, depois comprovando e construindo novos significados e experiências. Quer dizer: qualquer cultura é tanto tradicional quanto criativa, como num processo espiral dinâmico de retroalimentação. "Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um modo de vida - os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado - os processos especiais de descoberta e esforço criativo.", explica Williams, que insiste nos dois sentidos e na importância da sua conjugação.

Como exemplo, pode-se tomar uma cultura considerada superior feito a do alemão Wilhelm Reich, que revolucionou a Psicologia ao provar que a neurose é produzida socialmente, pela repressão da energia vital/sexual, gerada pelo pensamento mecanicista, em favor do trabalho e da produção. Conforme Reich, a neurose se instala no corpo, não apenas na mente. A energia estagnada e reprimida, ao não encontrar escape, se distorce em doença, gerando assim a neurose.

Conjugando à moda Williams, se poderia tomar, em paralelo, uma frase bem popular do sertanejo Riobaldo - personagem narrador da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas - que, ao concluir uma de suas muitas história contadas a um interlocutor invisível, resume - em palavras simples e ordinárias - a sofisticada teoria reichiniana: " quem muito se evita, muito se convive".

Cultura superior e cultura ordinária, de fato, têm muito em comum.

Para o filósofo Edgar Morin, em sua obra O Método ( 2002), a cultura é “ o primeiro capital humano” e, junto com a linguagem, inaugura a fase sapiens do homem. Metafórico, Morin explica a cultura como um megacomputador complexo que guarda na memória todos os dados cognitivos e suas normas:
“cada espírito/cérebro individual é como um terminal individual, e o conjunto das interações entre esses terminais constitui o Grande Computador”
que constrói o modo de vida comum e, wiliamsmente, inspira obras de artes.

Douglas Kellner

Já o americano Douglas Kellner, em seu livro A cultura da mídia ( 2001) pesquisa focado nos meios de comunicação de massa e acredita que o tecido cotidiano é tramado pela cultura que a mídia divulga, modelando opiniões politicas, comportamentos sociais, senso de classe, etnia, raça, nacionalidade, sexualidade, visão de mundo, valores. Enfim, material para construção de identidade pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnocapitalista contemporânea e produz uma cultura comum.

Talvez por isso, por essa cultura adjetivada - "da mídia"- onde quase tudo serve aos interesses do mercado, a arte pretensamente superior contemporânea resultante desse coletivo parido do " simulacro " - segundo Jean Baudrillard - seja chamada pelo francês de "pastiche do banal pop". Ainda que crítico, ao que parece Baudrillard também compactua do mesmo sentido ordinário de cultura de Williams.

A respeito do desprezo aristocrático "versão casa de chá" - como ironizou Williams - pelas massas, o pensador de Birmingham é enfático e conclusivo: "Não há massas; apenas maneiras de ver os outros como massas".

O que Raymond Williams fez pela cultura (e pelos Estudos Culturais) ao arrebatá-la do pedestal de sagrada para misturá-la ao cotidiano, é uma revolução oxigenante e democrática no modo de ver a sociedade e suas mudanças. E não nos tornou apenas mais sábios e entendedores da realidade. Nos tornou mais humanos.
(Graça Craidy)

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A roupa branca de fadinha retrô e o véu de gosma de maranduvá.

- E o que o Deus uniu, o homem não separe! - encerrou o padre, um ar entediado de quem já tinha repetido aquilo milhões de vezes, sublinhando a frase com um sinal da cruz sobre nossas cabeças, cujo significado não alcanço direito se queria dizer bênção, ameaça, advertência, fechamento de corpo ou premonição.

Eu mal podia acreditar. Onde arrumei coragem para aquela insanidade? Depois de anos em um namoro de boa troca porém descomprometido com o Walter, havíamos acordado, enfim, um tudo-ou-nada kamikase. Desconfio que aquela garrafa de Veuve Clicquot naquele fatídico feríado de Finados nunca deveria ter sido aberta.

O medo de morrer sozinho, a pressão dos amigos, o olhar magoado de mamãe, o aluguel cada vez mais alto - pra quê dois aluguéis se você pode pagar um só? - e nossa boa cama de orgasmo garantido, tudo podia ser alegado como boa razão para o casamento. Afinal, gente muito menos inteligente e descolada que nós se atrevia, por que não tentar?

No corredor da igreja rumo à porta, já comecei a me sentir meio ridícula, fantasiada com aquela roupa branca de fadinha retrô. Não bastasse o véu se arrastando atrás de mim feito gosma de maranduvá, percebia no olhar da mãe do Walter um certo desgosto com promessas de Otela explícita, ela que nunca aceitou eu fosse mais velha que o filho. Velha por velha, ficasse com ela... Em minha mão esquerda, aquela aliança de ouro inspirada decerto em argola de focinho de boi de carreta também começava a me pesar, estranha sensação de que meu braço esquerdo estava mais comprido que o direito.

(Lembrei do olhar triunfante das comadres da minha cidadezinha, quando anunciavam noivados: Fulana contratou casamento! Contratou?! Parecia business, uma espécie assim de Recibo Arras da pessoa.)

Bem que eu era apaixonada por Walter. A vantagem de um marido mais jovem é que não vinha com aquele ranço machista dos Fifties. Viva os anos 70! Meu doce cônjuge tinha a leveza dos crescidos no tempo do "be happy, don't worry", resgate de São Mateus, Novo Testamento: " a cada dia, sua pena".

Em meio aos sorrisos de plástico que adornam festas de casamento, aquele povaredo feito corvo empetecado em lixão, comendo e bebendo às custas da família da noiva e pouco se importando se você vai ou não ser feliz, captei no olhar de Walter uma pequena nuvem de pânico. Eu conhecia aquele S.O.S.. Toda vez que ele se sentia preso ao compromisso amoroso, assumia o cúmulo- nimbo de sufocamento que só desanuviava na renovação dos votos de forever solteiro.

Entendi perfeitamente a sensação. Também eu tinha lá minhas esquisitices de metereologia, não à toa havia permanecido solteira até então.

Talvez pela falsa impressão de rei-rainha que só quem vestiu fantasia de noivo-noiva sabe, naquela noite Walter e eu nos comportamos como dois pombinhos, atendendo à psiche-du-rôle das personagens.

Trégua consentida, mútuo pacto, vivemos uma lua de mel pontilhada de beijos e juras de amor eterno.

Eterno, até o dia em que ele reclamou que eu apertava a pasta de dentes do meio pro bico, em vez de do fim pro meio. Não acreditei no que estava ouvindo!... Dez anos juntos e ele nunca tinha se incomodado com isso, agora vinha com aquela bobagem?

-Bobagem, é? Pois fique sabendo que eu detesto suas calcinhas penduradas no box, revelando pra todo mundo o tamanho da bitola da sua bunda!
- Mas, que todo mundo, Walter? Ninguém entra em nosso banheiro...( Bitola da bunda? Aquilo me ofendeu...)
- E você, que não é capaz de juntar a toalha molhada do chão depois que toma banho? Diga: quem você pensa que junta sua toalha molhada, Walter, todos os santos putos dias, 365 vezes por ano?

Nosso casamento começou a acabar ali. Quando um casal se presta a gastar energia com miudezas, é porque finalmente a rotina se entranhou na relação, enferrujando os afetos.

Compramos duas pastas de dente. Para meu pasmo, constatei que Walter odiava Close-Up, a marca que sempre escolhi. Vitorioso, como se aquilo fosse um divisor de espaço, ele escolheu uma pasta branca - Philips - a mesma pura pasta que a mãe tinha lhe ensinado a usar, na infância. Walter, À Procura da Identidade Perdida...

Nossa cama, que antes parecia tão sedutora, passou a ter dia e hora pra acontecer. Nunca durante o futebol de domingo. Nunca, por exemplo, numa segunda-feira. Jamais de manhã cedo, como eu adorava. -" Vou perder a hora, mãe!"

Mãe???? Então, eu tinha virado parente dele, só porque cogitamos longinquamente ter um filho quem sabe um dia não sei quando mais tarde? Aquilo me caiu como uma bomba: tanto eu havia posto reparo e agora repetia o abominável incesto sempre condenado por mim em casais que se tratam pai e mãe.

Não sei se porque mais velha, não sei se porque mais diaba, corri ao espelho catar rugas e verdades cruas naquela mulher que um dia pensou ser moderna, madura, bem-humorada e jovial.

- À quem você está querendo enganar, neguinha? - me perguntava ela, com um brilho entre divertido e sarcástico no olhar.

Essa pergunta, pra mim, era fatal. Transparente toda vida e realista compulsiva, quando chegava ao ponto de eu me fazer tal pergunta, duma coisa podia ter certeza: a resposta sempre vinha em forma de mudança.

- Não gosto de ser casada! Não quero mais ser casada! Não nasci pra isso, putaqueopariu! ( Lembrei da Gabriela do Jorge Amado arrancando os sapatos de Sra Nassif.)

Já há algum tempo eu carregava a estranha sensação de ter virado
irmã xifópaga do Walter, como prenunciava Quintana em seu poema sobre casamento. Tudo o que a gente fazia era grudado. Cinema, televisão, refeições, festas de família, dormir, acordar, não fazer nada, tudo era junto. Não admira que estivéssemos virando parentes.

Um dia me dei conta que fazia os mesmos gestos do Walter - ritualizados - para abrir uma garrafa de vinho: pega a faca, põe do lado, ( direito! jamais esquerdo! ) Com a mão direita corta o laminado, do meio para trás, num impulso único. Pega o saca-rolha e religiosamente finca a ponta curva no centro da rolha. Exercício de precisão ge-o-mé-tri-ca!...Torce uma, duas, três, quatro. Pronto! Que chatice....Cadê aquele desconhecimento do sabe-lá como um gesto acaba, onde a distração do prazer?

Casais não se dão esse direito. Como dois pitbulls, um cuida de zelar pela perfeição do outro. À primeira quebra do rito, dá-le rosnado, e toca o burlador de volta ao caminho da lei.

O mistério se explicita. Não há mais mistérios. Nem espaço para descobertas, invenções, desafios. Surpresas não têm mais lugar.

Walter que me desculpasse, mas, mãe, só tem uma. E não era eu.

Hoje vivo de novo em meu apartamento de solteira, com minhas calcinhas penduradas no box denunciando bitolas de bunda e, vez ou outra, a rolha do vinho quebra e tenho que coar.

Agora, com licença. Vou tomar um banho de banheira e me fazer a mais gostosa para o meu doce amante que logo, logo bate aí. Quem? Walter, claro! Eu falei que era apaixonada por ele!... Não gosto é de casamento. ( Graça Craidy)

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Artigo: Deus morreu. Viva o corpo.


O livro A saúde perfeita, do sociólogo francês Lucien Sfez (1996), revela a ausência das grandes narrativas e a presença avassaladora de uma nova utopia nos anos 2000: a utopia da saúde perfeita.

Doentes, imperfeitos, velhos, hoje. Saudáveis, perfeitos, e - mais que perfeitos - jovens, amanhã. Sob que condição? Disciplina e doma dos desejos. Recompensa: um corpo belo e saudável, um planeta purificado e, o maior de todos os prêmios em vida, a eternidade.

Essa nova utopia da saúde perfeita é evidente em várias instâncias, legitimada pela ciência e pela tecnologia e territorializada no cotidiano, na obsessão pelo corpo perfeito, purificado das doenças e de imperfeições estéticas, e pela busca por recuperar o planeta das moléstias causadas pelo homem.

Lucien Sfez

Mais precisamente, nas campanhas contra o cigarro, contra a obesidade, contra os riscos dos " males brancos" (farinha, açúcar e arroz refinados), contra as moléstias decorrentes das práticas sexuais poligâmicas. E também na multiplicação de cirurgias estéticas reparadoras, protéticas e preventivas, na prática compulsiva de exercícios físicos, nas campanhas contra os desperdícios e agressões ao meio ambiente, em favor da separação dos lixos e, ainda, em toda atitude politica e ecologicamente correta.
Verso de maço de cigarro.

No EUA, em especial - líder nas pesquisas mundiais com os projetos Genoma, Biosphera II e Vida Artificial - a nova utopia se manifesta em clima de onipotência científico-tecnológica rumo à ambicionada imortalidade e pela conquista da eterna juventude num mundo sem mácula.

A utopia se apóia sobre triplo suporte:
1.no controle social do corpo através da autodisciplina historicamente apregoada pela religião evangélica;
2. na medicina purificadora que extirpa preventivamente órgãos sadios;
3. no resgate nostálgico de uma matriz cultural do passado norte-americano a que Sfez chama de wilderness, espécie de espírito da natureza selvagem revisitado, por exemplo, na luta pela preservação ecológica.

Os projetos Genoma, Biosphera II e Vida Artificial, de experimentos com seres humanos em condiçoes de vida perfeita, segundo Sfez (1996a) têm o objetivo máximo de "criar um novo homem, próximo ao conceito do super-homem de Nietzsche, com um paraíso terrestre artificial a reboque".

A nova moral do homem hiperindividualista em um mundo laicizado e sem instituições fortes aborreceu-se da metafísica. Em vez de plugada em Deus - constata Sfez (1996), pluga-se agora tangível e nietzscheanamente no corpo e na natureza.

Em sua obra Ecce Homo (2004:124), Nietzsche se intitula " Dionísio" contra o Crucifixo e vocifera contra "os infames" que inventaram Deus,:
O conceito de "Deus" foi arquitetado como antítese ao de " vida" (...) Os conceitos de " alma", " espírito" e, enfim, também aquele de " alma imortal" foram inventados para ensinar o desprezo do corpo, tornando-o doentio - isto é, " santo", para opor a todas as coisas que merecem ser tratadas com seriedade na vida (...) no conceito de " homem bom" se exalta tudo o que é débil, doentio, tudo o que enfim, deve desaparecer! ( ...) E tudo isso foi aceito em nome da Moral! - Écrasez l'infâme! (NIETZSCHE, 2004:124)
Friedrich Nietzsche

USA: o corpo domado em um ambiente wilderness

Saúde parece não ser apenas "ausência de doença" ou " normalidade estatística" como acreditava nos anos 70 o filósofo da medicina Cristopher Boorse, norte-americano criador da Teoria Bioestatística da Saúde (T.B.S.).

Tampouco seria "situação de perfeito bem-estar físico, mental e social", conforme definição da OMS- Organização Mundial da Saúde.

Na opinião de alguns pesquisadores contemporâneos da área, que rechaçam o adjetivo " perfeito", é necessário um olhar mais customizado para o paciente, que o contextualize não apenas no seu corpo, no seu espírito, na sua mente, mas na sua afetividade, na sua família, na sua cultura, na maneira como interage com a sociedade como pessoa, profissional, reprodutor, provedor etc.

Christophe Dejour


O mundo gira e o único que parece permanecer é a antiga premissa do senso comum médico: " não existem doenças, mas doentes".

Para o médico do trabalho, psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours (1982), o que de fato conduz as pessoas a optarem pela saúde é o que ele, apoiado nas descobertas da psiquiatria e da psicossomática, chama de "desejo". Desejo, no sentido de potência, sem o qual o homem adoece e voluntariamente se candidata à morte.

Porém, Dejours adverte, saúde não é algo que se possa ter como a uma propriedade, visto tratar-se de um estado de bem-estar instável, circunstancial, mutável, que mantém as pessoas em cobiça permanente da meta perfeita. Saúde como um quadro ideal estático, diz Dejours, é mera "ilusão" pois, " saúde é alguma coisa que muda o tempo todo".

Assim, em sua opinião, em vez de ponto de chegada, saúde é muito mais caminho. Pode até ter inspiração coletiva, concede Dejours, mas precisa contar com uma espécie de auto-impulsão, trajeto inelutavelmente solitário: "a saúde é algo onde o papel de cada indivíduo, de cada pessoa é fundamental (...) é necessário que este papel motor de cada homem na sua saúde apareça", ele enfatiza, na mesma direção de Sfez (1996).


Sfez (1996) descobriu que uma nova utopia da saúde perfeita ocupa os dias das pessoas não apenas como projeto ideal coletivo, mas como meta pessoal, individual, movida por uma nova moral do homem cotidiano, de controle social do corpo. Controle que, Sfez (1996:68) alerta: " não é um assunto técnico, mas político e moral".

Nos Estados Unidos, conforme Sfez (1996:68), essa moral autodisciplinadora controla o self pelo self "a serviço de uma ordem social harmoniosa generalizada", opondo-se vitoriosa ( e vitorianamente, n.a.) ao mercado antinatural causador de doenças e de envelhecimento, abominando os produtos considerados " excitantes", como carne vermelha, temperos, açúcar, café, chá, álcool e, é claro, sexo. O que conduziu Sfez (1996) à compreensão da luta contra a gula e da luta contra o sexo como se fossem uma coisa só (SFEZ, 1996:65), relacionando diretamente a moral com o medicinal.

O corpo passou a ser a metáfora da ordem e da desordem tecidas no interior da cultura. E a natureza, " o símbolo da oposição ao mercado e às instituições", afirma Sfez (1996:67-68), embora o sociólogo capitule: não há como escapar, o mercado acaba transformando tudo em mercadoria. A todo momento novos produtos e novos tratamentos acabam sendo criados para esse novo consumidor resistente, resultando em um paradoxo: "a resistência antimodernista se cumpre supermodernista (SFEZ, 1996:68)".

Como em toda utopia, observa Sfez (1996), a da saúde perfeita também tem um inimigo comum. Inimigo, entretanto, diferente dos antigos inimigos. O inimigo não está mais no exterior, não tem mais de ser combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o amarelo, o judeu, o proletário para o burguês, o burguês para o proletário. O inimigo está em nós. (SFEZ, 1996:25)

Essa aterrorizadora constatação em uma cultura que se compraz em atribuir a culpa dos seus fracassos ao Governo ou aos outros, mas ao mesmo tempo carrega paradoxalmente a culpa cristã do pecado original, se por um lado é paralisante, por outro, parece ter forçado um amadurecimento compulsório dos chamados hiperindividualistas do terceiro milênio.

Por bem ou por mal, começa a acontecer na atualidade uma suposta conscientização das causas superáveis das duas mortes mais temidas pelo homem: a sua, própria, e a do planeta que habita. Ambas tautologicamente significando em síntese o seu indesejado extermínio como sujeito e como ator.

Implacável, Sfez (1996:25) aponta giratoriamente o inimigo, o tal Outro anti-utópico: no perímetro da cidade poluída, do bairro desmembrado, nas famílias, em nossos corpos enfermos, em nossos genes. O inimigo está por toda parte e em lugar nenhum, anônimo, sem fronteiras, no electronicon sem rosto como na camada esburacada do ozônio, na droga e no colesterol (SFEZ, 1996:25).

Quando o Estado deixa de fazer a intermediação entre " o fiel" e " a ciência" (SFEZ, 1996:28), mesclando tudo em uma mèlange de mercado, a utopia escala as consciências individuais e os comportamentos coletivos, explica Sfez (1996:30).

E isso inclui " a cultura do pequeno", onde vigora a ausência de hierarquia e o multipapel.

O homem assume o posto do Criador, mirando o mundo com as lentes que o empoderaram: as da tecnologia e as da ciência.

Metafórico, Sfez (1996) traduz as características dessa nova utopia valendo-se de uma releitura dos ideais da Revolução Francesa onde, entretanto, "igualdade" teria sido substituída pela noção de " transparência".

Na transparência, todos vêem tudo, em uma visão total de como são feitos os humanos, no " desvisceramento do DNA", onde " os gens não podem escapar", diz Sfez (2007).

A fraternidade sofre um upgrade geográfico e transforma-se em " fraternidade universal" do convivio cósmico com Gaia, afastada dos homens "vulgares e medíocres (SFEZ, 2007)", em comunhão "sublimada com a natureza santificada (SFEZ, 2007)".

Sfez (2007) afirma também que essa utopia re-republicanizada acabou por se transformar em uma nova religião que "bolhifica" o mundo e intervém na genética com preocupantes estranhezas: os americanos pesquisam os gens do alcoolismo, do banditismo e - ironiza Sfez (2007) - "até dos homeless", mascarando a realidade social no intuito de fazer crer que mais que social, esse seria um problema de origem genética.

Nicole Kidman
Como ficar velho sem envelhecer

A utopia da saúde perfeita que embala hoje o cotidiano principalmente norte-americano tem o poder de afastar duplamente o medo atávico da morte.

Um, porque, sob o aspecto da intervenção genética sustentada na ciência e na tecnologia, posterga para cada vez mais longe o momento de enfrentamento fisico dessa realidade aterrorizante para todo ser vivo.

Dois, porque além de afastar o homem da morte, desconecta o ato de envelhecer do evento indesejado do óbito, transformando o aging em uma nova e inofensiva " contagem do tempo" que mantém os viventes feito jovens eternos, como se fossem imortais.

Contudo, essa mesma utopia que corrige a natureza recuperando supostos defeitos estéticos e criando, por exemplo, verdadeiras mulheres-Barbies, engendra ao mesmo tempo novas categorias quase bizarras de excêntricos "padrões de beleza" filhos da cirurgia plástica dita rejuvenescedora/reparadora.

Mais parecem enteados da cirurgia plástica, pois essas intervenções, na verdade, estão criando tipos fantasmagóricos de caricaturas de si, pedaços de pessoas - narizes escavados, bocas espatifadas, seios circunferentes, olhos arregalados - que claramente não resultaram da criatividade natural da genética, gente que pouco a pouco perde de si suas características tanto originais quanto humanas.

Para o que denuncia a velhice no homem, por exemplo, a ciência e a tecnologia inventam e reinventam a cada dia novas próteses: nos cabelos perdidos, o implante; na impotência erétil, viagra; nas articulações desgastadas, metal; nos órgãos vitais, transplantes, marca-passos, safenas.

Nas mulheres, as cirurgias plásticas reparadoras, a cosmética sofisticada e os suplementos ortomoleculares também logram enganar o envelhecimento: nos seios, silicone; nas rugas, botox; nos sexos ressequidos, hormônios; nos ventres flácidos, cirurgias; nas gorduras indesejadas, lipoaspiração; nos ovários sem uso, extirpações.

O excesso de dietas cria novos magros com estética de campo de concentração. Uma patologia ligada à comida que faz a pessoa enxergar-se gorda mesmo quando já está pele e osso tem levado à morte jovens anoréxicas no auge da idade, ao mesmo tempo que a compulsão pelo jogging e pelo fitness rompe ligamentos e cria novos cardíacos jovens anabolizados.

O consumo desenfreado do colesterol aumentou em taxas assustadoras o número de crianças com obesidade mórbida nos Estados Unidos, agregando novo sentido ao termo " macdonaldização" da vida e obrigando o próprio Governo norte-americano a empreender uma campanha de utilidade pública em prol de dietas e exercícios, chamada " Little Steps".

O corpo autodisciplinado descoberto por Sfez (1996) remete a desenho semelhante do "corpo dócil" de Foucault ( 2005:119) que em sua obra Vigiar e Punir ( 2005) acusa, no corpo disciplinado por minúcias hoje laicizadas, uma " anatomia política" e uma nova " microfísica de poder", na qual a disciplina rigorosa (das dietas, dos exercícios físicos, da renúncia aos fats e aos excitantes) aumenta as forças do corpo dito "produtivo, útil" (trabalhador, consumidor), ao mesmo tempo em que diminui a sua força política através da submissão e da obediência.
Michel Foucault

Ou seja, quanto mais disciplinado o corpo, mais à mercê da dominação externa, neste caso, da dominação do discurso tecnocientífico da utopia vigente. Um discurso, aliás, paralelo ao discurso do consumo sempre à espreita em qualquer rota de fuga que se queira empreender.

Na busca do corpo perfeito que garante também uma aceitação social, profissional e sexual, surge em contrapartida um paradoxo melancólico, como aponta o sociólogo americano Bryan Turner (2000:134): " ao nos fazermos desejáveis, eliminamos também o desejo", prisioneiros das nossas compulsões de pureza, perfeição e higienização da vida.

Barthes (2000:140), quando fala de moda (o apogeu da utopia da beleza e do corpo perfeito) entende que a questão contemporânea já não passa mais tanto pela categoria sexo ou gênero, e sim pela etária, e afirma que hoje " é a idade que recebe os valores de prestígio e de sedução".

O psicanalista argentino Germán García ( 2000:159), no entanto, explica a necessidade do tão anelado belo:" a beleza é o que estende um véu sobre o horror da morte", ele afirma, concedendo assim não simplesmente ao belo, mas ao belo que vem da juventude, mais que poder de prestígio e sedução, o generoso poder de bálsamo.


Por tudo isso, é prudente observar que o que sobra aqui não seria apenas uma submissão voluntária do corpo perfeito aparentemente sem consciência da sua condição de dominado. Subterrâneo, aflora um sentido ancestral primordial negociado nessa troca com os novos deuses utópicos da saúde perfeita: " minha liberdade por sua imortalidade". (Graça Craidy)
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BIBLIOGRAFIA:

BARTHES, Roland - " La feminidad". In Los cuerpos dóciles. Hacia un tratado sobre la moda. Buenos Aires: La Marca, 2000.

DEJOURS, Christophe - Por um novo conceito de saúde. Palestra proferida na Federação dos Trabalhadores da Metalurgia, da Confederação dos Trabalhadores (CGT) francesa, 1982. Disponível em: http://planeta.terra.com.br/saude/angelonline/artigos/art_saucol/con_sau.pdf.

FOUCAULT, Michel - Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2005.

GARCÍA, Germán - "Cuerpo, mirada y muerte". In Los cuerpos dóciles. Hacia un tratado sobre la moda. Buenos Aires: La Marca, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich - Ecce Homo. São Paulo: Martin Claret, 2004.

SFEZ, Lucien - A saúde perfeita. Crítica de uma nova utopia. São Paulo: Loyola, 1996

___________ - "O homem ambiciona a imortalidade". Entrevista com Lucien Sfez por Daniel Hessel Teich, para o jornal O Globo, em 12 de setembro de 1996. Disponível em: http://hps.infolink.com.br/peco/lucien01.htm 1996a

___________ - Apontamentos em sala de aula no seminário Epistemologia da Comunicação, proferido por Lucien Sfez no PPGCOM PUCRS, Porto Alegre, de agosto a dezembro de 2007.

TURNER, Bryan- " El gobierno del cuerpo". In Los cuerpos dóciles. Hacia un tratado sobre la moda. Buenos Aires: La Marca, 2000.

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Bucho é a mãe, Skol.

Em frente ao altar, o noivo de um recente comercial da Skol interrompe a cerimônia de casamento e diz para a noiva que antes de prometer fidelidade, primeiro ele precisa saber se ela promete ficar gostosa para sempre. Que nem a Skol - ele esclarece - de quem se diz fiel, pois a Skol não muda nunca, é sempre gostosa. E explica a razão de sua demanda: - a mãe, por exemplo, ficou um bucho!

Mãe-bucho. Noiva-cerveja. Minha nossa senhora do bom parto! Não podia ser mais pertinente esse comercial da Skol, inda mais se veiculado próximo ao Dia das Mães. Uma esperteza de marketing invejável. Peter Drucker teria orgasmos. Philip Kotler aplaudiria de pé. Al Ries enlouqueceria.

Imagina, que sacada de mestre! Enquanto todos cantam loas e fazem cuchi-cuchis às mamães, a Skol ousa o caminho diferente e não se vexa de tropeçar no sagrado. Praticamente xinga a mãe de todo mundo, representada ali pela mãe do noivo, de quê? De bucho.

Será que eu ouvi bem? Bucho bucho? Aquilo que se faz comida popular de panelão, assim, tipo bucho de bode, bucho com feijão branco, buchada? Aquela coisa nojenta, mole, malcheirosa, cheia de escamas peguentas. Aquele cruz-credo. Mãe? Sim, eu sei o que quer dizer bucho. É aquele lugar de onde saiu o rapaz que está ali falando, quando ainda era um projeto de ser humano e a mãe dele engordou pra ele nascer lindo e são de lombo.

É o próprio filho - atenção, galera da piada pronta: não é o genro nem o enteado - que chama a mãe de bucho. E o próprio pai, marido da mãe, do alto da sua elegância, boniteza, esbelteza, juventude eterna, que se ri à socapa, cúmplice do monstro vestido de noivo que encarna ali a sua continuação. Leia-se aqui, homens, em geral.

Mas o que é que aconteceu com aqueles criadores bem-humorados da publicidade que criavam Skol há poucos anos, que inventaram o conceito genial de "descer redondo", as brincadeiras gostosas e inteligentes do "tssss", etc etc etc. Ficaram obnubilados, de repente? Beberam cerveja demais? Perderam a noção? Será que precisa dessa grossura inominável, desse humor corrosivo à planeta & casseta e pânico-na-tv pra vender a qualquer preço, pra superar a concorrência na guerra pífia das cervejas?

Na última cena do comercial, o noivo, já em mangas de camisa, bebe uma Skol num balcão de bar com um amigo, e o amigo reforça: - Falou pouco, mas falou bonito! O locutor justifica a grosseria da piada: - Quando a situação é quadrada, Skol, a cerveja que desce redondo. Quadrada? Chamar a mãe de bucho é uma situação apenas "quadrada"?

E eles brindam, pouco se importando com o fracasso do casamento. Aliás, as mulheres que assistem a esse comercial certamente devem pensar: sorte da noiva! Livrou-se de um imbecil. Cusp!

Não me venham dizer que me falta humor, que ando rabugenta, que é tudo uma grande brincadeira, porque não é. O problema é ético, é de conceito. A questão é que o comercial, como fruto da cultura, revela em si um pouco do que se passa no contexto da cultura onde aquele produto é consumido. E desconfio que algo de podre começa a feder no reino das relações familiares onde os papéis de pai, mãe, filho andam todos de pernas para o ar. Seria? Farejo também que há algo de muito estranho rolando entre homens e cervejas. Pelo menos, entre homens e cervejas nos comerciais.

Parece que todos ficaram idiotizados, hipnotizados, infantilizados, que fazem qualquer coisa, mas qualquer qualquer, por uma cerveja. Como se cerveja fosse a coisa mais importante do mundo. Mais que casamento. Mais que mãe. Mais que amor. Mais que tudo. Cerveja. E os amigos da tchurma.

Sim, porque não sei se você percebeu, mas eu detecto uma certa homoerotização e misoginia no reino da cerveja, onde a mulher só entra ou como uma bunda-peito sem cabeça ou como uma chata invasora que só aparece pra estragar a curtição dos rapazes. Ops! Até quando esses rapazes crescidinhos vão ficar fechados em turma, iguais aos garotos do primeiro grau que detestam meninas porque meninas só enchem o saco?

Será que é, mesmo, a coisa mais natural do mundo chamar a mãe de bucho e comparar a mulher com cerveja - comparar, aliás, e perder! - e, no final, em vez do mocinho ficar com a mocinha, acabar sempre com outro mocinho?

Por outro lado, lembro que lecionei quatro anos na faculdade de publicidade da ESPM-RS, convivi bastante com rapazes dos 17 aos 25 anos, pretensamente o público-alvo da Skol, e imagino que eu tinha até um bom diálogo com eles. Pois, a não ser que eu seja muito desligada, nao me consta que nenhum deles teria a desfaçatez de pensar em sua mãe como bucho ou em sua namorada como menos gostosa do que uma cerveja. Aliás, Freud diria que muito mais provável eles desejassem um dia encontrar uma namorada tão bacana como suas mães, édipos que todos somos.

Então, eu me pergunto: afinal, quem são esses rapazes idiotas que a propaganda da Skol está tentando representar? Seriam os próprios rapazes que criaram a propaganda da Skol? (Graça Craidy)

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