Que Janis Joplin, que nada!





- Quer ser a cantora aqui do bar, Gracinha?

Acostumado a me acompanhar ao piano nas mil e uma canjas que eu dava na noite porto-alegrense nos anos 70, Maestro Garoto fez um convite inesperado que me gelou a alma.

Nunca havia pensado seriamente em cantar como profissional, antes. Ainda que eu cantasse desde que me dei por gente e mesmo que o prazer de cantar tenha sempre me transportado a uma dimensão onírica desmedida, jamais ousei acalentar semelhante atrevimento. Uma moça de família, filha de Dr. João, cantando na noite? Nem pensar!

Ensaquei a ovelha negra que morava dentro de mim e tratei de ir pra faculdade arrumar uma profissão decente, daquelas que dão dinheiro e estabilidade e que nenhuma tia velha pudesse fazer muchochos e cochichar: - vergonha da família!

Aliás, segui um conselho do próprio Dr. João que - hoje me dou conta - era moderníssimo para a época: - Faça alguma coisa para ter autonomia, minha filha, pra não depender de dinheiro de marido...( Será que ele já tinha a premonição de que eu nunca me casaria, mesmo?)

E agradeci ao Maestro Garoto. Me faltava valentia.

Mesmo assim, qualquer oportunidade lá estava eu, microfone na mão, olhos fechados, encarapitada num banquinho alto. Ou, então, metida em botecos de garagem, onde cruzava a madrugada em loas musicales, chegava em casa às 7 da manhã, tomava banho e ia trabalhar o dia inteiro, bem contente.

Desde menina, na minha casa, se cantava. Meu irmão tocava violão, minha irmã e eu fazíamos duas vozes, minha mãe arredondava o coro, meu pai, cigarrinho na mão e olho de peixe morto ouvindo, se comprazia em nos pedir três " toca aquela!" e a gente já sabia quais: Nervos de Aço, Vingança e Naquela Mesa.

Lembro que com 14 anos eu cantava num coral da igreja e também num grupo chamado Os Vocalistas, e que viajávamos pela região aos sábados, entoando desde trechos de ópera como Va Pensiero, no coral, até roquinhos dos Incríveis, no Vocalistas. O que provocava resmungos do meu pai: - Não sei o que tu queres te enfiando com esse bando de gente mais velha em pleno sabado à noite, em vez de ir passear com jovens da tua idade...

Eu não queria nada. Só cantar, E hoje lembrando disso - só cantar - lembro também que, de todos os aplausos que recebi, teve um especial que ficou marcado em minha memória para o resto da vida.


Cenário: um bar de beira de praia em Garopaba, com meu amigo Paulo Tiaraju - grande violeiro - e mais uma turminha, num desses feriados em que metade do Rio Grande do Sul se muda pra Santa Catarina, como se fosse extensão da própria casa. De noite,
estrelas no céu, e nós já embalados por uma alcatéia de caipirinhas e cervejas, Paulo me anuncia no palco, pra cantar.

O lugar estava quase vazio. Sentei num banco, fechei os olhos e me deixei levar pela doçura do acalanto de Gershwin: Summertime. Sempre que cantava isso, parece que eu incorporava um santo e me enlanguescia toda e cada agudo me pendurava numa nuvem e me deixava lá feito fio de mel babando pra terra. E the living ficava easy, mesmo. Porque o daddy era rich e a mamma, good looking. O baby não precisava to cry.

No momento em que acabei de cantar, ainda de olhos fechados e meio anestesiada pela emoção de me rasgar assim em mil tiras, o profundo silêncio foi quebrado por aplausos frenéticos e uma ovação desproporcional ao numero de pessoas que eu imaginava presente.

Só quando abri os olhos, me dei conta: o bar tinha ficado completamente lotado e em todas as janelas havia gente se espremendo do lado de fora, me aplaudindo e me acariciando com sua felicidade musical.

E a glória das glórias foi o elogio que ouvi, na saída, de um rapaz negro grandão, dono de um sorriso inesquecível: - minha branca, tu canta lindo como uma negra!
( Graça Craidy)
SE VOCÊ CURTIU ESTE POST, TALVEZ GOSTE DESTE.

4 comentários:

  1. Angelica Moraes escreveu:

    Tenho o maior orgulho de ser amiga dessa figuraça chamada Graça Craidy. Confiram o blog dela e como escreve bem. Cronista de mão cheia e cantora afinadíssima, além de publicitária das melhores no ramo. Fomos colegas de FAMECOS na PUC/RS. Faculdade de Meios de Comunicação Social, para os não gaúchos que nos lêem.

    ResponderExcluir
  2. Paulo Tiaraju escreveu:
    Bah Gracinha, amada, como conseguiu lembrar? Aquela foi uma noite fantástica, eu havia esquecido, lembro da noite, lembro de ti cantando Summer time, só não lembro qual era a praia que a gente estava. Gracinha, precisamos nos ver com urgência não acha? Beijos Paulo

    ResponderExcluir
  3. Um dia ainda te levo pra cantar nas minhas bandas. Só preciso convencer meus colegas (amigos) músicos. Sim, Graça, baterista não é músico, mas o melhor amigo deles...
    Um beijo

    ResponderExcluir
  4. Abobalhadamente emocionada contigo...

    ResponderExcluir

DESTAQUE

MEU QUERIDO DEMÔNIO DA TASMÂNIA

Ano passado, passei 40 dias em Roma, estudando pintura e frequentando museus e galerias de arte. Não me lembro em nenhum momento de o nosso ...

MAIS LIDAS