O Papai Noel anoréxico.

Era uma vez um papai noel anoréxico que perdeu o emprego mas ganhou de novo o interesse da mamãe noel que acabou ali mesmo com essa história de papai-mamãe e deu o maior guenta no noel dizendo que xo,xo,xo essa parentagem broxenta  e vamoquevamo neguinho do meu chamego e como o noel emagreceu e quebrou o quebranto, a coca, que tinha lancado  um feitiço pra ele ser gordo forever, se esvaiu numa nuvem preta fedorenta fazendo pof! e, na falta da tal felicidade de fingimento apregoada por sua propaganda infame, todo mundo comemorou o natal tomando chimarrão e pinga e rum e vinho de jarra e água da fonte, dançando o ai-bota-aqui e tava escrito que podia botar o que quisesse, ate o seu pezinho e era uma vez miniconto de um papai noel chines, quem não gostou que conte outra vez. Beijos de feliz natal e feliz ano novo! (Graça Craidy) PS: papai noel era anoréxico só de mentirinha. Ele na verdade fez vigilantes do peso escondido e mentia que era anorexico porque causa muito mais na balada prum papai noel ser anoréxico que fazer vigilantes, não é? 
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Eu acredito no lado B.

A gurizada provavelmente não vai saber do que estou falando, mas, no tempo do disco compacto simples, quando vinham gravadas só duas músicas, existia o Lado A, onde a gravadora colocava uma música que queria que a gente transformasse em sucesso, furando de tanto ouvir e atormentando as rádios pra tocar. E tinha o outro lado - o B - onde gravavam uma música menos votada, pressupondo que aquela ali nunca ia acontecer. Ou seja, eles que decidiam o lado nobre pra gente curtir. 

Pois eu, enxerida, adorava os Lados B. Pensava: se eles querem que eu escute só o Lado A, me manejando que nem uma ovelha bocó, sinal então que ali naquele Lado B deve ter coisa que me interessa (pelo menos pra mim que queria gostar com meu próprio gosto, não com o alheio). E assim descobri maravilhas de poesias empoeiradas e melodias lindíssimas jamais ouvidas por quem caía no conversê monoteísta do Lado A. 

Conto isso, porque com gente é igual. As pessoas escolhem (ou, na divisão de papéis da família, “escolhem” pra elas) um Lado A pra tornar público, e os outros acreditam que a verdade inteira é aquela ali. Nem questiono se o tal Lado A que cada um decide mostrar é bom ou ruim. O que não engulo é a limitação de alguém ter que se aprisionar num único lado. Pobre, pobre de marré. 

É sempre interessante dar uma espiada no Lado B das pessoas. Pode ter ali um monte de coisas deliciosamente surpreendentes que a gente nunca saberia se não relevasse o Lado A e fosse mais fundo. Atrás dum cara carrancudo pode ter um coração de manteiga se defendendo de ser rejeitado, rejeitando-se ele mesmo antes de levar um “não” pelas fuças. Atrás de uma mulher muito gargalhante pode ter uma alminha triste que não recebeu permissão pra ser normal, isto é, pra ser frágil e forte, triste e alegre, rir e chorar. 

Uma vez recebi uma lição inesquecível dum garçom, num restaurante em São Paulo. Eu estava superestressada, ele trouxe o prato errado, derrubou os talheres e soltei os cachorros no pobre homem. Em vez de responder na mesma moeda, ele ficou me olhando, muito calmo, retirou o prato e falou suavemente, com aquela voz de amansa-louco: - “A sra deve estar com problemas…Já trago o seu prato certinho.” Fiquei muda e acabei rindo sozinha, envergonhada da minha reação. Tivesse ele acreditado no meu Lado A e eu nunca aprenderia mais essa. 

Desejo, querido leitor, que você ajuste seus sentidos com sintonia fina pra descobrir interessantes Lados B por aí. Quiçá até Lados C, D, E, F, G. Por que não?
( Graça Craidy)

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Acordou de mau-amor?

Um dia, escutei uma garota na mesa ao lado, num bar, explodir num desabafo: “- Eu não quero acordar amanhã de manhã só porque não morri!” 

Aquele só-porque-não-morri ficou ecoando nos meus ouvidos, cheio de significados, e me ocorre que essa é uma bela frase pra todo mundo explodir - por direito - quando a vida começa a ficar assim meio preto e branca, quando o dia seguinte parece sempre igual, que nem no filme Feitiço do Tempo, em que o cara acorda exatamente no mesmo dia, todos os dias, e vai enlouquecendo, enlouquecendo, até mudar o seu jeito de ser e destravar o seu relógio. O filme é uma metáfora interessante do que precisa ser feito, naquela fase da vida em que você parece estar caminhando numa esteira, sem nunca sair do lugar. Pare de fazer a mesma coisa, que a coisa deixa de ser a mesma, ora! Não parece claro? 

Ri tempos atrás quando um médico amigo me explicava as regras de bem-viver, tão óbvias, dizia ele, que chegam a ser simplórias: 1. se uma coisa está dando certo, continue. 2. se não está dando certo, pare. 3. se você não sabe o que fazer, não faça nada, até saber.  

Qualquer semelhança com Deixa a Vida Me Levar, do Zeca Pagodinho, não é mera coincidência. O que é deixar a vida levar a gente senão continuar quando tá dando certo, parar quando tá dando errado e não fazer nada, antes de receber um sinal de que lado o vento tá mais propício? 

Não é de repente que as coisas parecem iguais. A gente é que não escuta, não vê, não se comove com os sinais que a vida e o corpo nos mandam. A gente, que é tão reparenta com os  outros, costuma ser cega, insensível e surda pra pôr reparo em si própria. Não fosse assim e você teria notado que aquela ânsia de vômito aparece sempre na hora em que você tem que ir praquele trabalho chato, aquela tosse surge cada vez que você tem que engolir o mesmo sapo pela milésima vez, aquele herpes pinta justamente quando você se obriga a fazer o que seu corpo já cansou de mandar recado que não quer fazer. E assim por diante. Até ficar doente de verdade. 

Ou então, você inventa que quer porque quer uma coisa agora e fica dando murro em ponta de faca e nada de dar certo. Enquanto isso, milhões de outras coisas interessantes passam por você feito borboleta convidando a voar por outras plagas e você nem tchum, porque está que nem cavalo com viseira, obcecado – que, por sinal vem de “tornar cego” em latim - pela idéia fixa de ir por aquele caminho. 

O sujeito acorda de manhã faceiro, assobiando, legal! Vida tá boa. Tudo le suele? Toca o barco. Outro, não. Acorda de mau-amor, como disse sabiamente a filhinha dum amigo meu, um dia em que ele acordou rabujando: - Pai, você está de mau-amor? Grande garota! Entonce, acordou de mau-humor? Algo hay.Tem gente que azedou e nem percebe. Dormiu, sonhou, lavou os pensamentos na noite, virou a página do dia e acorda rançoso? Tá na cara que esse mau-humor é mau-amor, seja mau-amor de falta de beijo, de falta de vida, seja mau-amor por si próprio. Tá na cara que tem que mudar e não se dá conta.
 
Aí eu pergunto: que bem maior existe na vida que a própria vida? Dinheiro? Poder? Fama? Nada paga uma boa gargalhada. Nada paga você ter saúde de nem perceber a máquina maravilhosa do seu corpo funcionando azeitadinha para o que der e vier. Por isso, preste atenção no que a vida e o seu corpo lhe gritam ou sussuram, querido leitor, pois tenho certeza que você também, como a menina lá de cima, não quer acordar amanhã de manhã só porque não morreu. (Graça Craidy) ( Arte: Gartic)

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Casaram e foram felizes até a página 147.


- Se eu não consigo achar nesta multidão nem o Wally, que eu sei quem é, como vou encontrar o homem da minha vida que eu não tenho a menor idéia de quem seja? - se pergunta agoniada a jovem e bela Mariana, protagonista do primoroso filme argentino Medianeras ( 2011), dirigido por Gustavo Taretta.

Não à-toa, ela - arquiteta desempregada fazendo bico como designer de vitrines - contracena boa parte do filme com manequins de gesso, homens másculos que não movem um músculo, não questionam, não ofendem, não desapontam, não chegam com novidades, não viram o cocho. Bastante pedagógica, a imagem.

Ressabiada com o último homem com quem viveu quatro anos que - um belo dia ela se deu conta, apavorada-  se revelou completo desconhecido, nossa mocinha junta suas tralhas e some do mapa direto pra dentro da história do filme, uma fábula urbana sobre o amor e a ausência dele.

Me dou conta, eu também, de que na verdade somos todos se não completos bastante desconhecidos uns para os outros. E que o sonho de toda gente seria nos congelar, uns e outros, para que ninguém mudasse um milímetro desde o dia em que nos apaixonamos não um pelo outro mas por nossas mútuas idéias idealizadas do queríamos que fôssemos um para o outro.

No entanto -  oh, dor! -,  como somos irredutivelmente iguais ao rio de Heráclito, águas onde ninguém se banha duas vezes, sempre chega o dia em que o outro já não nos aprisiona mais represa, falsa natureza artificial fingindo de RG definitivo. E os outros eus que nos habitam escapam pelas orelhas, exuberam os olhos, roubam o controle do gesto. E o bochincho está feito. E já lá vem um dedo I-want-you enfiado em nosso nariz cobrando I want you do jeito que eu conheci, não mude, não cresça, não ouse, não experimente, não exerça nada além do já provado.

E é aí que o bicho pega. O bicho, o divórcio, a briga, a separação. E vai cada um para um lado e começa tudo de novo, sair campeando pela vida outro ideal pra tentar congelar em zips cerrados e etiquetados, esquecendo, amnésicos, de que aquela forma como tal tem prazo de validade. E que deveria ficar claro: felizes para sempre, neste formato, até a página 147. E a página 148? Bueno, haveria que se fazer um - esse sim, o mais honesto pacto nupcial - pacto de rediscussão dos termos contratuais sem necessariamente partir para o rompimento.

Da página 148 em diante poderia muito bem ser um novo romance encenado pelos mesmos protagonistas, com uma ressalva: eles seriam livres para  exercer outros eus, descongelados da obrigação fictícia de permanecerem estátuas feito os manequins da Mariana.

Porque, afinal, tudo é processo. Relação é processo. Vida é processo. Natureza é processo. Tudo é  mutação e movimento. O tempo todo. Por que ficaríamos só nós, os tontos, parados brincando de habitante infeliz de Pompéia depois do vulcão?

O verbo ser talvez devesse ser revogado e assumido como estar, bem mais coerente com o gerúndio, o tempo do verbo mais verdadeiramente real, tempo de estar vivo aqui e agora definitivamente não definitivo. Ando, endo, indo, ondo, undo. Mundo mundo vasto mundo.
( Graça Craidy)

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Agonia e êxtase de Izidério Valdonílson.

O Martin Fierro, na rua Aspicuelta, Vila Madalena, São Paulo, faz o bife de chorizo mais delicioso do Mercosur.  Não tem pra Puertos Madero, Palermo ou qué-sé-yo. O bife de chorizo do Martin Fierro vem num prato com um elegante ramo de agrião e forma com ele uma flor, um poema, uma epifania que só se sabe, mesmo, da boca para dentro.

Lá eu costumava me aquerenciar volta e meia, com amigos, quando batia aquele desejo pré-histórico de chafurdar no pecado capital sem culpa. Bife de chorizo acompanhado, por supuesto, de inigualáveis papas. E, sin embargo, de um maravilhoso, reconfortante, libertário e dionisíaco vinho tinto. Podia ser malbec, carmenére, cabernet ou merlot. Desde que seco.

Pués, naquele puxadinho sencilla de mesas apertadas com vista para a paz da Vila Madá, era fundamental também dar início aos trabalhos com uma empanadita de carne feita na hora, que vinha pelando pra mesa, e desaparecia na boca entre gemidos suspirosos de ay-mamita!

Um belo sábado ao meio-dia, estávamos na varanda do Martin Fierro, eu e minha amiga Pati, na campana do bife de chorizo, e já no enleio malemolente do vinho, naquele assunto preguiçoso e sem-vergonha de fim de semana, o garçom passando pra lá e pra cá em azáfamas portenhas.

Esse tal garçom - me lembro bem - era uma figura rara. Alto, magro, nordestino da cara angulosa, uns 30 e poucos anos, cabelos ondeados, ele gostava de puxar assunto nas mesas e prosa que te prosa. Cinco minutos de conversa e já contava que ser garçom era apenas um prolegômeno breve para a sua - essa sim, duradoura - carreira de cantor e compositor de música brega. E dali pra puxar uma fita demo do paletó branco eram dois palitos. Digamos que o nome dele fosse Valdonilson. Ou Izildério, quem sabe? Não posso garantir.

Só sei lhe dizer que Izildério Valdonilson tinha acabado de nos presentear com sua fita K-7 de inspiração Reginaldo Rossi,  Pati e eu rindo aquele riso sem relógio, de sábado, achando supimpa a vontade boa e justa dele de virar artista, nem que fosse um artista de música brega, porquois pas?  Que convivam morubixabas e orixás!

Era sábado, mas em vez de me jogar dentro de um abrigo ou de uma bermuda com camiseta, eu tinha escolhido um vestido de linho muito bonito de minha especial predileção, pra usar com sandália baixa. Longuette, manga curta, decote careca, preto com  risca de giz, adredemente amarrotado como todo linho deve ser, mas chiquezinho: tinha um abotoamento charmoso nas costas, da nuca até o tornozelo, com delicados botões de madrepérola. Me deixava com um ar assim entre o descolada e o  retrô.

Lembro que as cadeiras do Martin Fierro eram vazadas, e que eu estava sentada de costas para a entrada. E lembro ainda do restaurante lotado. Era um sábado de sol e, em assim sendo - de sol - o povo paulistano por nascença ou adoção tudo o que quer na vida é lagartear e comer e beber sem hora pra pedir a conta. E, claro, se os convivas estavam ali soltos e solteiros, nada obstava que um olho espichasse aqui, outro acolá. Nós aproveitávamos para lançar unas miraditas que matam, nunca se sabe o que o destino arquiteta.

Enfim, a modorra já havia se estabelecido e o volume das vozes nas mesas vizinhas tinha subido pelo menos dois tons, graças ao Baco ou às Norteñas, e podia quizás rolar uma sedução promissora. Que no! Começou a acontecer uma coisa muito estranha com o Izildério Valdonilson.

O homem se punha parado ao meu lado direito, na mesa. Me olhava angustiado, esfregando uma mão na outra. E seguia lá pra dentro, sem dizer palavra. Dali a pouco, lá estava ele de novo, do lado esquerdo da mesa, me encarando em agonias. E nada que nada.  Até que uma certa hora ele se aprumou,  abaixou o rosto ao lado da minha amiga Pati e cochichou qualquer coisa no ouvido dela.

Pati levantou de sopetão, os dois se dirigiram pra fora do bar, na calçada. Eu vi que eles conversaram algo pelo jeito muito sério. E olhavam pra mim, ambos, bem enfáticos, com - estranhei!- uma dramaticidade completamente fora de hora. Confesso que eu não estava entendendo porcaria nenhuma. Côsa mais esquisita, sô, vá-te!  Mas, pensei: a mí qué! Deve ser rolo do cara pedindo uma força pra Pati ou talvez queira me morder nuns pilas mas faltou valentia? Que no me venga!

Nisso, minha amiga volta pra mesa e, lembro daquela cena - das mais bizarras! - como se fosse hoje. Sem nem sentar, me olhando dentro do olho lá no fundo, a cabeça levemente abaixada feito o touro quando vai atacar o toureiro,  um jeito assim entre o histérico, o estóico e o catatônico, ela riscou com o polegar no guardanapo jogado sobre a mesa, desenhando  uma letra "V" bem forte, a ponta da unha afundando na textura macia do papel. Deste jeito, com gestos bem lentos. Primeiro, a haste esquerda do V. Depois, a haste direita. Só então, ela se acomodou devagarinho na cadeira, quase desfalecendo. E, empurrando o guardanapo com aquele V estrangeiro pro meu lado, ela murmurou entredentes a sentença mais orangotango-gorila-chimpanzé-babuíno-mico da minha vida sócio-cultural paulistana:

 - Guria, seu vestido desabotoou inteirinho atrás, da cintura pra baixo, e to-do-mun-do do restaurante está vendo - há horas!!! - a sua bunda de fora pela fresta do vestido, com a calçola em V. Assim!

E apontou de novo, implacável, para o maldito guardanapo.

(Graça Craidy)

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Artigo: Os filhotes da DPZ .

Até os anos 60, ser da Criação em qualquer agência de propaganda no Brasil significava ser menosprezado pelo Atendimento, ignorado pelos clientes e desvalorizado pelos empresários do setor.

Como foi possível uma mudança de identidade profissional tão forte a ponto de em poucas décadas a Criação passar a comandar o processo de muitas agências, - principalmente das agências lideradas por profissionais advindos dessa área como Roberto Duailibi, Francesc Petit, José Zaragoza, Nizan Guanaes, Washington Olivetto, e Marcelo Serpa,  entre outros -  invertida a posição com seus antigos comandantes do Atendimento, que se tornaram, se não caudatários das recomendações e estratégias dos criadores, no máximo, seus parceiros coadjuvantes?

Primeiro de tudo,  ruptura. Conforme o crítico cultural Kobena Mercer, citado por Stuart Hall (2004:9), a identidade só se apresenta como questão quando está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é deslocado.

Foi o que aconteceu com a identidade profissional dos criadores publicitários, entre os anos 60 e 70: um deslocamento gradual da posição de desimportantes para importantes no processo da agência, fruto da crise de uma identidade que não mais lhes servia.

José Ruy Gandra.
  
Oprimidos pela cultura da prática profissional da época e por quem detinha o poder econômico - os donos das agências de propaganda nacionais ou os executivos de agências multinacionais americanas aqui instaladas, que seguiam o modelo norte-americano das agências fundadoras do setor - os criadores eram vistos apenas como burocratas de um processo maior onde se valorizava a quantidade dos trabalhos e não a sua qualidade criativa, recorda José Ruy Gandra.
[nos anos 60] As agências ainda ostentavam um perfil bem careta. Eram enormes. Fiéis ao modelo implantado pelo empresário James Walter Thompson, em 1871, ao fundar a primeira agência americana, elas ainda alimentavam a presunção de oferecer todos os serviços de marketing a seus clientes. Essa oferta implicava desde a criação de um boné ou de uma nova embalagem para uma caixa de fósforos a uma campanha em cadeia nacional de rádio e TV para vender um novo carro. (GANDRA,1995: 46)
 Com esse modelo conhecido como full-service, presume-se que não havia espaço para a predominância do valor de apenas um departamento dentro das agências, à exceção, claro, do departamento que gerenciava todo o processo, ou seja, o Departamento de Atendimento, fiel representante do poder patronal - obviamente interessado no faturamento - e que não apenas comandava, em última instância, o trabalho das equipes ( de prazos a preços) como também recebia os salários mais altos da hierarquia, dada a sua evidente importância no negócio final. Pelo menos naquele formato. E gerando, naturalmente, um mudo e ressentido enfrentamento entre o Departamento de Criação e o de Atendimento, com nítidas vantagens para o último.

Malucos, poetas e esquisitos.

Enquanto o verbo do atendimento era, concretamente, faturar, o da criação não passava de abstratos redigir e leiautar. Enquanto um apresentava resultados substantivos, que sonavam na caixa registradora, o outro oferecia a matéria-prima menos tangível de todas, em uma era essencialmente positivista: meros adjetivos superlativados.

Até a década de 60, conforme a história, era precária a situação dos profissionais que atuavam em criação nessas agências de perfil repartição pública privada, produzindo anúncios engravatados e num contexto onde criatividade não era o foco do negócio:
A criação era apenas um desses serviços prestados pelas agências, uma das baias de seu labirinto burocrático - quase nunca a mais importante. Os anúncios, em geral, eram empolados, uma lista de elogios ao produto sem o menor compromisso com a realidade.(GANDRA,1995: 46)
Segundo relato do jornalista Gandra (1995:48) as agências tinham rotinas "de causar inveja nos personagens do escritor Franz Kafka", e o processo de criação era costurado por idas e vindas do boy do tráfego - uma espécie de mandalete de operações, que pegava o texto datilografado na mesa do redator, levava para o estúdio, no outro andar, onde ficavam os layoutmen, que criavam o layout e produziam a arte-final. Redatores e layoutmen não só não trocavam idéias, como os autores do texto só viam o anúncio depois de publicado.

Sérgio Graciotti.

Criação conversar com o cliente, como hoje é comum em agências de propaganda? Nem pensar! "Nós mal víamos a cara deles", afirma o redator da época Sérgio Graciotti (1995:48), contando que tanto redatores quanto layoutmen recebiam baixos salários, e, principalmente os das letras, com origens diversas - jornalistas, advogados, escritores - faziam da propaganda um bico à espera do "momento certo de escrever o seu grande romance ou livro de poemas", recorda Graciotti (1995:49), confidenciando que tanto redatores quanto layoutmen eram considerados "os malucos, os poetas, os esquisitos da agência" (1995:48).

"Eram como párias nesse mercado", conclui Gandra, baseado nos relatos dos criadores de então (1995:49). Contrastando com os de atendimento, que desde o terno conservador ao cabelo bem cortado faziam jus a claras tarefas e aos maiores salários, coerentes com a posição que ocupavam, de executivos de negócios. Contraste sobre o que bem alerta Kathryn Woodward ( 2000):

a identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. Se um grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como o tabu, isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais (WOODWARD, 2000:14).
 Kathryn Woodward.

Em outro momento do capítulo Identidade e Diferença, Woodward (2000) observa que é preciso explicar porque as pessoas investem nas posições que os discursos da identidade lhes oferecem. No caso dos redatores do momento histórico acima, fica transparente a razão de serem tratados como párias e esquisitos, pois investiam negativamente em sua posição. Afinal, como respeitar o trabalho de alguém que o encara como um mero bico?

 Muita gente de criação, aliás, conforme relata Julio Cosi Jr (1995:49), " sonhava em mudar para o atendimento e assim melhorar o seu contracheque".

 O outro clube,  foco na criatividade.

Bill Bernbach.

Nos Estados Unidos, no entanto, um criador publicitário americano chamado Bill Bernbach, o B da agência DDB, já havia deflagrado, no final dos anos 40, o que se chamou depois de Revolução Criativa na propaganda.

Redator, pleno de idéias, mas, por ser judeu, impedido de trabalhar no fechado círculo do chamado The Club, dos WASPs ( white-anglo-saxon-protestant) das grandes agências da Madison Avenue - a avenida das griffes de propaganda em Nova York - ele havia criado seu próprio negócio, com mais dois sócios também judeus.  Apostava em um novo modelo de agência "enxuta, compacta e com foco na propaganda como um negócio eminentemente criativo" (GANDRA, 1995:46), fundando um outro jeito de pensar e fazer a propaganda, que acabou conhecido como The Other Club, irônicamente apontadas suas flechas ao já citado The Club.

Embora a maioria dos criadores publicitários brasileiros ainda não soubesse, estava lançada a base téorico-pragmática do que Woodward (2000:14), aponta como requisito básico para determinação da identidade: um sistema classificatório que mostre como as relações sociais são organizadas e divididas. Uma clara separação entre nós e eles, eu e o outro, a identidade como algo relacional, que só existe a partir de um diferente de mim, evidenciando "a negação de que não existem quaisquer similaridades entre dois grupos", como ela exemplifica, usando o caso dos inimigos sérvios e croatas:
A identidade sérvia depende, para existir, de algo fora dela: a saber, de outra identidade (croata), de uma identidade que ela não é, que difere da identidade sérvia, mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista. (...) Ser um sérvio é ser um "não-croata". A identidade é, assim, marcada pela diferença (WOODWARD, 2000:9).
No final dos anos 50, a Revolução Criativa americana ainda não havia chegado ao Brasil, a não ser aos olhos e ouvidos de uns poucos bem-informados, via anuários, revistas e jornais estrangeiros. A diferença, de fato, de ser um não-atendimento, no caso dos criadores publicitários brasileiros, foi buscada pessoalmente em Nova York, em 1960, a bordo de um avião da Pan Air, levando, em meses diferentes, dois publicitários paulistas que, apaixonados pelo novo credo de Bill Bernbach, haviam solicitado estágios em sua DDB: Julio Cosi Jr., redator na Standard, uma das poucas agências nacionais no mercado, e Alex Periscinoto, jovem layoutman de cartazes e ilustrações na antiga loja paulista de departamentos Mappin.

Alex Periscinotto.

Eles queriam ficar a par de tudo sobre aquele criador que tinha derrubado as hierarquias na agência, que havia juntado redator e layoutman em duplas de criação, fundando inclusive o democratizante hábito de discutir idéias em mesas redondas com suas equipes, como na lenda do Rei Arthur, para evitar que apenas um fosse visto como o cabeça do encontro.
Bill Bernbach (...) virou a cultura publicitária americana de pernas para o ar no decorrer dos anos 50. Seus anúncios bem-humorados e freqüentemente irônicos tinham um poder de comunicação incrível. Eles conversavam com o consumidor em vez de adulá-lo. A forma dos anúncios foi totalmente revista. Fotografias substituíram as ilustrações e os textos adquiriram um tom charmosamente direto, num interessante mix de objetividade, sedução, bom-humor e poesia. Amarrando tudo isso, uma única matéria-prima que Bill Bernbach soube valorizar como ninguém: as boas idéias (GANDRA, 1995:47) .
Bill no Brasil.

Júlio Cosi Jr.

Quando voltaram de Nova York, em 1960, os dois emissários brasileiros da Revolução Criativa de Bernbach contagiaram pouco a pouco o espírito dos criadores publicitários locais, conquistando muitos novos fiéis para suas fileiras, entre os quais o mais tarde diretor de criação da Norton Publicidade, o redator Neil Ferreira e os criadores da sua equipe Jarbas de Souza, José Fontoura, Aníbal Gustavino, Carlos Wagner de Moares, e também Roberto Duailibi, um redator de sucesso, colega de Cosi Jr na agência Standard, que trazia em seu currículo anos de experiência na tradicional J.W.Thompson de São Paulo, onde havia convivido com dois talentosos diretores de arte catalães - Francesc Petit e José Zaragoza, agora donos de um estúdio de arte chamado Metro 3, a quem Duailibi prestava serviços de free-lance.

Enquanto Cosi Jr voltava para suas lides criativas na Standard, Alex Periscinotto, ainda contaminado pela genialidade do famoso anúncio "Think Small" da DDB para a Volkswagen dos Estados Unidos, acaba criando, também ele, uma campanha revolucionária para a agência nacional Alcântara Machado, detentora da conta da Volkswagen do Brasil, o que lhe valeu, mais tarde, convite para virar sócio dos irmãos Alcântara Machado (ambos de atendimento), cuja letra final P daria novo significado à sigla Almap, antes abreviatura de Alcântara Machado Propaganda, agora Alcântara Machado Periscinotto.

De outro lado, tome-se dois catalães secularmente rebeldes por origem histórica e junte-se a um jovem mato-grossense de origem imigrante libanesa repleto de ideais e dá-se o quê? A primeira agência de propaganda brasileira fundada estritamente por profissionais de criação que acreditavam firmemente no valor da criatividade: a DPZ - Duailibi, Petit e Zaragoza.

DPZ, o espírito de 68 na propaganda brasileira.


Zaragoza, Duailibi e Petit.

O ano era 1968. Com a DPZ, estava lançada a pedra fundamental concreta da diferença na criação publicitária brasileira. A partir daí, ser de criação passou cada vez mais a significar não ser de atendimento, invertendo-se então o valor anterior. Ser de criação queria dizer ser o mais valorizado: nova illusio - para usar o termo de Bourdieu - do mercado.

Em seu capítulo A Centralidade da Cultura, Stuart Hall (1997) esclarece os meandros percorridos na formação da identidade, mais por representações oferecidas a nós pelos discursos de uma cultura - diz ele - e pelo nosso desejo como envolvidos, que propriamente pela emergência de um eu verdadeiro e único. O que parece acontecer é que respondemos aos apelos feitos por esses significados:
Stuart Hall.
O que denominamos "nossas identidades" poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos "viver" como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente (HALL, 1997:26).                                               
Washington Olivetto e Francesc Petit.

Na nova DPZ, que representava o desejo exposto de resgate histórico de toda uma classe específica de trabalhadores, os três criadores assumem papéis diversos: Duailibi, por sua alma de atendimento - segundo Gandra (1995:66), de postura mais discreta, diplomática e articuladora, faz às vezes de atendimento criativo, hibridando o melhor dos dois mundos em favor da proposta criativa de sua agência - criatividade como business - enquanto Petit e Zaragoza, reconhecidamente, as vertentes criativas da agência (1995:67), principalmente na vanguarda do visual, excêntricos no discurso e nos modos europeus, bipartem-se em duas alas criativas, sólidas fornecedoras da mais supreendente matéria-prima para as campanhas de seus novos clientes.


Roberto Duailibi.

Petit, trabalhando em dupla com um jovem redator irreverente dito por Marcondes (2002:125) " o mais importante profissional de criação da propaganda brasileira de todos os tempos", que costumava vestir terno acompanhado de tênis e gravatas extravagantes, por nome Washington Olivetto, com quem faria campanhas memoráveis como a do Garoto Bombril (1978).

Zaragoza, primeiro fazendo dupla com Duailibi e com o redator Palhares Neto e depois (1977) em parceria com um dos poucos redatores que havia conseguido romper a inércia paquidérmica das agências de então, Neil Ferreira, conhecido por sua contundência, irônico, ex-jornalista e antigo integrante, na brasileira Norton Publicidade, de um incipiente time bernbachiano de criadores autointitulado Os Subversivos (1969), roubando da história da época o significado que, para muitos militantes da esquerda de então, conduziria direto aos porões do DOPS, onde desapareceriam misteriosamente em meio a horrores, torturas e inomináveis infrações dos direitos humanos.

José Zaragoza e Neil Ferreira.

Na propaganda, no entanto, ser subversivo levou-o direto à privilegiada, sofisticada e divertida companhia de José Zaragoza, um artista plástico com formação na Escola de Belas Artes Las Lonjas de Barcelona.


A explosão da publicidade brasileira.

O momento era de ditadura militar no Brasil. Os dirigentes precisavam contar ao povo que a Revolução " Redentora" de 64 tinha valido a pena. Para isso, escolheram a mídia mais moderna da época: a TV.


Sergio Capparelli e Venicio de Lima, em Comunicação & Televisão (2004) relatam a estratégia completa dessa network do país pelos generais, em dois momentos específicos: primeiro, concedendo emissoras de TV de norte a sul, para garantir a cobertura comunicacional de todo o Brasil; depois, estimulando a fabricação de televisores, para que os brasileiros, em cada lar, pudessem conhecer todas as benesses de um modo de gerir progressista chamado milagre brasileiro.

Uma coisa levava à outra. Quanto mais televisores, mais televisores anunciados. E liquidificadores, e batedeiras, e fogões, e tudo o mais que a nova sociedade de consumo quisesse e pudesse adquirir, com uma novidade confortante em matéria de acesso ao consumo: o crédito direto ao consumidor, as famosas suaves prestações mensais.

Havendo demanda de um lado, a oferta, do outro, precisava se profissionalizar, principalmente na comunicação. E é aí que entra a publicidade. E os criadores de publicidade, como soldados da vez. Convidados também a se aliar ao Governo na prestação de contas da sua atuação usufruíam de polpudas verbas governamentais, o que deve ter sido a justificativa para, em 1971, os colunistas publicitários organizadores do IV Prêmio Colunistas terem concedido, entre os chamados Destaques de 1971, o seguinte agradecimento público a um coronel:
À Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, na pessoa do Cel. Otávio Costa, pelo excelente trabalho desenvolvido. (Ata do IV Prêmio Colunistas 1971)
 Os verdes anos: militares e dólares.

A partir das facilidades desse momento histórico, favorecido por uma reserva de mercado que proibia agências que não fossem nacionais de atender a contas de governo, algumas agências cresceram em cima das verbas públicas, como a antiga MPM de origem gaúcha ou a paulista Salles, do proeminente Mauro Salles, como relata Santos (2003), em sua tese sobre o percurso da mundialização da publicidade. Outras, progrediram amparadas na enorme oferta de novos produtos que precisavam encontrar o seu lugar no mercado.
Anúncio MPM.

A DPZ, embora contasse também com verbas públicas como a da Receita Federal e da TELESP, conquistou seu espaço da mesma forma com contas do mundo privado pelo manejo de uma comunicação dita criativa, ousada, coloquial, irreverente e bem-humorada. São de sua criação as personagens antológicas do Frango da Sadia (72), do Leão do Imposto de Renda (79), do Garoto Bombril (78) e, mais tarde, do Baixinho da Kaiser ( 1984).

Os criadores da DPZ lavavam a alma dos que ainda eram obrigados, por circunstância, a exercer papéis limitados às velhas regras importadas das agências de perfil de atendimento, tão zelosas de suas corporações que, na ficha técnica dos prêmios, em vez de divulgarem o nome dos autores de cada trabalho inscrito, colocavam Equipe Agência Tal como comprova, por ex., a ata do Prêmio Colunistas de 1969:
 CATEGORIA: Melhor comercial de TV
 TÍTULO: Série Ford Corcel
 CLIENTE: Ford
 AGÊNCIA: Mauro Salles/ Inter-americana
 CRIAÇÃO: Equipe da Mauro Salles/ Inter-Americana
 PRODUTORA: Lynxfilm                                                                                (Disponível em: www.colunistas.com/ propaganda/prbro2ata1969.html)
Hans Dammann.

Mas, já havia, então, ostensivamente, o vírus da diferença caracterizador de identidade, feito um clube metafórico. Embora desorganizados como categoria e " tropeçando em dilemas éticos", pelo relato de Gandra (1995:26), "dedicando o dia à direita e a noite à esquerda", ilustra o redator Hans Dammann (1995:76), e vivendo atormentados por um certo sentimento de culpa de servir ao capitalismo e de brilhar em duros tempos de ditadura militar, os criadores publicitários já tinham muita coisa em comum. Só faltava fundar um clube concreto, tangível, que evidenciasse oficialmente o que Woodward ( 2000) chama de social e simbólico:
(...) dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da diferença são "vividas" nas relações sociais (WOODWARD, 2000:14).
Z de Zara.

A oportunidade surgiu de duas vertentes, conta Gandra (1995:27): uma, proporcionada pelos estudiosos de marketing All Ries e Jack Trout, americanos, que começavam a conquistar prosélitos no Brasil com seu discurso em defesa do valor do posicionamento da marca como muito mais eficiente que o da criatividade, na propaganda, o que, segundo José Ruy Gandra, "deixou nossos publicitários de cabelo em pé" (1995:28); outra, oferecida por uma espécie de certame de peças publicitárias - o Prêmio Colunistas de Propaganda, autointitulado O grande prêmio da publicidade brasileira, criado em 1965 por jornalistas do setor, cujo júri era formado, não por especialistas em criação, mas pelos próprios jornalistas, premiação considerada pelos criadores da época sem critérios, ou, por outra, com escusos critérios - como relata o redator Palhares Neto: "dizia-se que eles tratavam as premiações como um negócio" (1995:27).

Mas, segundo Zaragoza (2005), havia ainda um terceiro motivo: os criadores brasileiros achavam absolutamente desrespeitosas as campanhas traduzidas globais que algumas multis insistiam em veicular no Brasil. Zara - como é chamado em seu meio - recorda a construção da independência dos criativos brasileiros:
A propaganda era completamente americanizada. Tudo vinha dos Estados Unidos e era traduzido, adaptado. (...) Era uma propaganda dublada. Muitas vezes os redatores tinham que seguir a campanha da Ford que nos Estados Unidos dizia: "Ford in action". Aqui o redator era obrigado a colocar: " Ford em ação". Os layoutmen mudavam apenas as cores. Traduzir, sem criar.(...) Um dia fizemos uma convocação e apareceram mais de trinta pessoas, um belo número. Ali estavam os expoentes. A pauta, vamos usar o termo, era buscar a nossa linguagem, pois somos divertidos, alegres, amáveis, bem-humorados, e não estamos passando isso para a propaganda. Sem isso, ela não é autêntica, não tem a nossa cara. ( ZARAGOZA, in BRANDÃO, 2005, s/nº)
João Augusto Palhares Neto.

Nas ruas, falava-se a palavra democracia em voz muito baixa. Nas eletrolas, Chico Buarque cantava Apesar de você. O momento, recorda Palhares Neto (1995:27), era muito politizado: " seria muita alienação achar que num momento como aquele o CCSP só lutaria por causas específicas da sua categoria", ele enfatiza.

Nesse contexto de motivação política, irritados com os Colunistas, indignados com o dito posicionamento e insatisfeitos com a ingerência da propaganda traduzida, que ameaçava de novo mandá-los de volta ao ostracismo das antigas baias kafkianas ( e, portanto, a uma nova crise de identidade), os criadores publicitários resolveram se unir em torno de duas bandeiras: a da democracia ( apoiando mais tarde o Diretas-Já), e a da autonomia e valor da criatividade como um bem insubstituível na propaganda.

The brazilian other club.
 
Em 1975, sete anos depois da divulgação do I Prêmio Colunistas oficial ( que não deixa de existir, mas perde o seu antigo poder de legitimação), nasce The Other Club brasileiro, o CCSP - Clube de Criação de São Paulo, com a proposta principal de produzir o seu próprio critério de premiação, aquilo que criadores publicitários - avalizados por suas práticas - entendiam como o melhor em criação publicitária, legitimando sua identidade e diferença, e demarcando o terreno conquistado, ano após ano, até os dias de hoje, com seus célebres Anuários que acabaram virando a bíblia da excelência criativa publicitária no Brasil, consultados cotidianamente pelos profissionais brasileiros, de estagiários aos já consagrados. Cumprindo o que Woodward (2000) prevê como legitimador de identidade:
os discursos e os sistemas de representação constróem os lugares a partir dos quais podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000:17)
José Zaragoza.

Primeiro presidente do CCSP: o Z da DPZ, José Zaragoza. Atente-se para o detalhe: onde havia demarcação de diferença, havia DPZ. Não surpreende, assim, que todos os acontecimentos posteriores a 1968, ligados à conquista de espaço nacional e internacional, seja em prêmios do Clube de Criação de São Paulo, dos Colunistas, ou em prêmios mais cobiçados ainda, como os Leões do Festival Internacional de Publicidade de Cannes ou as medalhas do anuário do Clube dos Diretores de Arte de Nova York, entre outros., estejam conectados, direta ou indiretamente à DPZ. E, claro, à herança conceitual de Bill Bernbach.

Por Bill Bernbach, o Brasil globalizado de hoje é tão premiado em concursos internacionais que acabou reconhecido, na década de 90, pelo volume e qualidade dos seus trabalhos, como o terceiro país mais criativo do mundo em publicidade, junto com Inglaterra e Estados Unidos, e inclusive, em 2004, o relatório americano Gunn Report (2004), que compila as premiações mais importantes do mundo, no setor publicitário, aponta uma agência brasileira ( e multinacional) como a mais premiada do mundo, segundo notícia do site Brazzil Magazine, que reporta news em inglês sobre o Brasil, datada de 16 de novembro de 2004:

Marcelo Serpa, da Almap. 
Almap BBDO, no Brasil, uma agência do BBDO Worlsdwide foi nomeada a " mais premiada agência do mundo" em 2004, de acordo com The Gunn Report. Agora em seu sexto ano, The Gunn Report combina a lista dos vencedores dos mais importantes prêmios do mundo ( 32 concursos de TV, 20 competições de peças gráficas) para determinar um ranking geral. Almap BBDO foi posicionada entre as 50 agências top do mundo, todo ano, desde 1999, quando nasceu The Gunn Report. No entanto, este [ The Gunn Report] marca a primeira vez que a Almap BBDO - ou qualquer outra agência da América Latina - conquistou o prêmio mais alto.
 A cadeia produtiva criativa.

Nizan Guanaes, da DM9.

Mas, não é só pela cultura que somos constrangidos, diz Woodward (2000), ampliando a origem das nossas identidades não apenas pela " variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais" (2000:19).


Perceba-se aqui, com delicada lupa, como a maioria das relações sociais dos envolvidos na construção da identidade do criador publicitário se cruzam e entrecruzam por uma única e grande estrada socializadora. De certa maneira, como se constata a seguir, praticamente todos os novos líderes do segmento publicitário criativo tiveram passagens profissionais pela DPZ, em um mercado que hoje conta com centenas de potenciais agências empregadoras.


Washington Olivetto, da W/GGK.

Quando Washington Olivetto resolve sair da DPZ, em 1986, e associar-se a uma agência suíça chamada GGK, fundando a W/GGK, ali havia um replay de DPZ . Quando Nizan Guanaes (ex-DPZ) resolve sair da W/GGK (depois W/Brasil), em 1989, e fundar a sua DM9, ali havia também um replay da DPZ. Quando Marcelo Serpa (ex-DPZ) e Alexandre Gama resolvem sair da DM9 ( 1993) e associar-se à Almap, ali havia também um replay da DPZ etc. 
1968. DPZ⇒ 1986.W/GGK⇒ 1989. DM9⇒ 1993.ALMAP.
Em tudo dessa surpreendente cadeia produtiva, na verdade, costura-se também um grande replay do maestro Bill Bernbach. A criatividade como matéria-prima mais importante no negócio da propaganda continuou imbatível, no Brasil, década após década, cada um dos novos representantes do poder da criação publicitária desenhando, à sua maneira, um modo peculiar de convencer clientes, mídia e consumidores do seu inestimável valor.

Stalimir Vieira.

Todos, porém, lastreados pela mesma e grande diferença fundadora - uma mentalidade criativa de propaganda - como observa o redator Stalimir Vieira:
mentalidade que ajudou a transformar a profissão de publicitário numa das mais ambicionadas. Mérito que não é grande por formar tantos publicitários, mas, antes de tudo, por fazer pessoas procurarem na publicidade uma oportunidade de serem originais (VIEIRA, in GANDRA, 1995:16).
Ou, como conclui, dramaturgicamente, o relator da saga dos criadores, no Brasil, José Ruy Gandra: "os profissionais de criação deixaram de ser coadjuvantes e se tornaram protagonistas" (1995: 93).
____________________________________________

Resumo: Esta reflexão busca entender como se construiu a identidade do criador publicitário brasileiro, entre as décadas de 60 e 70, quando importantes profissionais de Criação - em um passado não muito distante considerados malucos - se transformaram em presidentes de suas próprias agências, respaldados no valor da criatividade que acabou conduzindo o Brasil ao reconhecimento internacional, nos anos 90, como um dos três países mais criativos do mundo em publicidade, junto com Inglaterra e Estados Unidos.
 Palavras-chave: criação publicitária; poder; criatividade; identidade; diferença.

Referências bibliográficas:

- BRANDÃO, Ignácio de Loyola - A voz das estrelas. São Paulo: CCSP, 2005

- CAPPARELLI, Sérgio, LIMA, Venicio A. de - Comunicação e Televisão: Desafios da Pós-Globalização. São Paulo: Hacker, 2004.

- ESCOSTEGUY, Ana Carolina - Cartografias dos Estudos Culturais, Uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

- GANDRA, José Ruy - História da Propaganda Criativa no Brasil. São Paulo: CCSP, 1995

- HALL, Stuart - A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004

- ___________ - "A centralidade da cultura", in Cultura, Mídia e Educação, Educação &   
Realidade. 22 ( 2) 15-46 (jul/dez.1997), UFRGS, Faculdade de Educação, 1997

- ___________- "A codificação e a decodificação nos meios de comunicação", in Culture, Media, Language. London, Hutchison, 1980. ( trad. Ana Carolina Escosteguy)

- ___________  - "Reflexões sobre o modelo de codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall", in CRUZ, J. e LEWIS, J (org) Viewing, Reading, Listening. Oxford: Westview Press, 1994 ( trad. Ana Carolina Escosteguy)

- MARCONDES, Pyr - Uma história da propaganda brasileira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

- WOODWARD, Kathryn - "Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual", in SILVA, Tomas Tadeu da (org)  - Identidade & diferença, a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

( Graça Craidy)

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